A alienação do pensamento positivo

Tempos estranhos estes em que valorizamos uma espécie de optimismo alienado, onde tudo supostamente dependerá de nós próprios, independentemente de qualquer circunstância à nossa volta.

Há umas décadas ouvia-se recorrentemente, principalmente da boca dos mais velhos: “O que é preciso é ter saúdinha e sorte.” A frase provocava, invariavelmente, sorrisos cúmplices entre os mais novos, sendo aceite como gesto de simpatia e de alento, mas associada à resignação, a uma espécie de sortilégio fatalista perante a existência.

Nos últimos tempos parece que passamos para o extremo oposto. Hoje em dia o que vinga é a ideia de que temos de ter, em todos os momentos, de forma resoluta, sem hesitações, firmes e sorridentes, “pensamento positivo”. Por tudo e mais alguma coisa se ouve que sem isso não se vai a lado nenhum. Apesar da omnipresença desse sintoma, nunca lhe liguei muito. Enfim, era levemente irónico com ele, como agora. Até que há algumas semanas ouvi o desabafo de pessoa amiga.

Dizia-me ela que, desde que lhe foi diagnosticado cancro, que já não pode ouvir as pessoas à sua volta – de médicos a amizades informais – a argumentar que é imperativo ter uma atitude positiva perante a doença. Ela percebe que as pessoas a querem animar. Da mesma forma que entende que é preciso ter alento. “Mas é de tal forma que, às tantas, já estão a tentar convencer-me que o que me aconteceu, afinal, foi uma coisa boa, porque me vai tornar sensível e espiritual”, dizia.  

Tempos estranhos estes em que valorizamos uma espécie de optimismo alienado, onde tudo supostamente dependerá de nós próprios, independentemente de qualquer circunstância à nossa volta. Claro que a capacidade de iniciativa e a vontade de cumprir desígnios é mais do que desejável. Mas é pouco crível que isso aconteça escondendo na gaveta a tristeza, a angústia, as frustrações, e tantas outras emoções que nos constituem. “Às vezes até tenho receio de aparecer meio lastimosa ao pé de alguém”, acrescentava ela. “Parece que temos de estar sempre em forma e, aconteça o que acontecer, de bom humor.”

Neste tipo de aproximação o indivíduo é a medida de todas as coisas. Os conflitos são dele. E ele tem capacidade de os resolver. Nem vale a pena evocar cenários colectivos exteriores, porque se o fizer serão encarados como meras desculpas. Pode ser alvo de discriminação racial, ter nascido num meio familiar carenciado ou ser alvo de injustiça no local de trabalho, mas isso não pode servir de atenuante. No discurso positivo todos podem ser bem-sucedidos e superar-se. Todas as metas podem ser alcançadas. Todos os desafios ultrapassados. Basta querer. E se os objectivos não forem cumpridos, é apenas porque não nos esforçamos devidamente ou porque existe um bloqueio qualquer. Ou seja, por cima dos conflitos, seja porque se está doente, ou no desemprego, ainda se apanha com a síndrome da culpabilização.

O que fazer? Que tal olhar para o mundo como ele é, com alguma lucidez? Não acreditar em universos cor-de-rosa e em pensamentos positivos só porque sim. Ter esperança, pelo menos aquela que tem alguma solidez, só é possível a partir da constância, desse conhecimento profundo que um percurso é sempre frágil, feito de avanços e às vezes de alguns recuos, e com a consciência de que somos feitos de muitas emoções e que não vale a pena eliminar umas em favor de outras, mas sim saber compreende-las e geri-las a todas. Existem circunstâncias individuais que podemos transformar sempre, mas é preciso também assumir que dependemos da interacção com os que nos rodeiam e até de dinâmicas que não controlamos. Está tudo ligado.

Sim, é preciso saúdinha. E já agora, sorte. E, claro, autoestima. E ainda assim, às vezes, não chega. E no entanto a vida é uma cena do caraças.

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