Omitir é mentir: o caso Downer

A Wikipédia é útil e já fiz donativos, mas é preciso cuidado com o que não diz.

Reserve as quartas-feiras para ler a newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media.

Há uns tempos, a primeira frase da crónica de José Pacheco Pereira era: “Para além de outros disparates e fake news, a minha ‘biografia’ na Wikipédia começa com a seguinte frase: ‘É professor do ensino secundário.’”

Lembrei-me disto ao abrir a “biografia” que Alexander Downer tem na Wikipédia, onde a certa altura se lê que, “em 1999, Downer teve um papel-chave a apoiar as Nações Unidas num referendo em Timor-Leste”.

É preciso lata.

Até às vésperas do referendo de 30 de Agosto de 1999, Downer — que tem o recorde de longevidade como ministro dos Negócios Estrangeiros da Austrália (1996-2007) — fez tudo para não incomodar a Indonésia (e tudo para tirar o tapete aos timorenses e a Portugal).

Mudou de agulha da noite para o dia e Camberra liderou a força militar da ONU que pôs fim ao caos que destruiu Timor após o referendo.

Mas dizer-se que “Downer teve um papel-chave” no referendo é uma frase que, parecendo inócua, desvirtua a realidade. É mentira. Mesmo que a Austrália tivesse pago o referendo — o pessoal da ONU, os jipes e a gasolina, os boletins de voto e toda a logística — é errado dizer que Downer “played a key role” no referendo de Timor-Leste.

O pior, no entanto, é o que falta. São as omissões desta “biografia” que tornam Downer um caso exemplar do cuidado a ter com a Wikipédia. Saltam à vista dois buracos.

1. Em 2007, Downer deixou de chefiar a diplomacia e pouco depois foi contratado como consultor da petrolífera Woodside, o maior produtor de gás natural do país.

2. Em 2012, um (agora) ex-espião australiano e o seu advogado informaram o Governo de Timor-Leste de que, em 2004, Camberra tinha escondido 200 microfones nos escritórios do seu Palácio do Governo, em Díli, para ouvir as discussões internas de preparação para as negociações com a Austrália sobre a partilha das receitas do petróleo e do gás do Mar de Timor.

Duas omissões que levam a uma terceira. Foi ao saber que Downer fora contratado pela Woodside que o espião, conhecido como Testemunha K, se sentiu traído. O novo emprego do ex-ministro seria a recompensa por usar os serviços secretos do Estado em defesa dos interesses comerciais da Woodside.

A mesma Woodside que, em Junho de 1974, num consórcio com a Burmah e a Shell, descobriu petróleo e gás em Troubadour, a área que integra o campo petrolífero Greater Sunrise, que está dentro da “metade” do Mar de Timor que pertence a Timor-Leste. Passados 45 anos, o Greater Sunrise continua virgem. No site da Woodside, é explícito que a empresa continua à espera.

Xanana Gusmão, que durante os últimos três anos negociou o Tratado entre Timor-Leste e Austrália sobre as Respectivas Fronteiras Marítimas no Mar de Timor (ratificado há dias), que definiu um regime especial para o Greater Sunrise, explicou bem o problema ético desta porta-giratória: “Não era a segurança do Estado [australiano] que estava em causa, mas utilizar inteligência militar para espiar questões comerciais entre a riquíssima Austrália e o paupérrimo Timor-Leste. Não íamos invadir a Austrália.”

Bernard Collaery, um dos whistleblowers, foi concreto: “Era uma situação tipo Watergate. Em total violação da soberania [timorense], eles forçaram a entrada e esconderam microfones na sala do conselho de ministros e nos gabinetes dos ministros do então primeiro-ministro [Mari] Alkatiri e instalaram aparelhos de audição clandestinos na sala de conferências ministerial.”

Cereja em cima do bolo: Camberra aproveitou um contrato para obras de renovação dos escritórios do governo timorense — feito ao abrigo do programa público de ajuda ao desenvolvimento da AusAid — para instalar os aparelhos secretos.

A reacção de Downer? Era mentira e ingratidão. Na altura, o jornalista Richard Ackland escreveu um artigo de opinião no Sydney Morning Herald com o título Ungrateful Timor gets the Downer treatment. O “tratamento Downer” foi este: “Penso que eles estão a cometer um grande erro se pensam que a melhor forma de lidar com esta negociação [sobre a fronteira marítima] é tentar envergonhar a Austrália, acusando-nos de fazer bullying, de ser rica e toda essa conversa, tendo em consideração tudo o que fizemos por Timor-Leste.”

A Austrália foi o único país do mundo a reconhecer a anexação de Timor-Leste pela Indonésia. Se não o tivesse feito, não teria recebido anos e anos de receitas de petróleo que não lhe pertencia.

Num telegrama diplomático de 1975, Richard Woolcott, embaixador australiano em Jacarta, fala sobre a diferença entre a “postura pragmática” e a “postura ética” na condução da política externa. O diplomata recomenda a primeira. O governo concordou e essa foi a sua conduta nos 30 anos seguintes. Não há sinais de mudança. Hoje, os dois whistleblowers, Testemunha K e Bernard Collaery, estão a ser julgados por conspiração contra a Austrália.

Sugerir correcção
Ler 8 comentários