Inédito de Josefa de Óbidos vai “posar” um mês no Museu de Arte Antiga

A leitura da sina do Menino Jesus foi vendida em leilão, em Maio, na Alemanha, e tem como destino a Argentina. Pelo caminho, faz uma paragem em Lisboa.

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A leitura da sina do Menino Jesus é uma pintura datada de 1667 DR

É uma espécie de compensação, ainda que temporária, para o facto de o Estado português não ter conseguido comprar a pintura inédita de Josefa de Óbidos (1630-1684) que foi a leilão na Alemanha no final do mês de Maio. A leitura da sina do Menino Jesus (1667) foi vendida em Bona por 220 mil euros (preço de martelo, a que acrescem as taxas e comissões) a um negociante de arte argentino, mas vai poder ser apreciada a partir desta sexta-feira, e durante precisamente um mês (até 6 de Outubro), no átrio do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa.

A iniciativa partiu do director do MNAA, Joaquim Caetano, que, quando foi contactado pelo negociante Jaime Eguiguren a pedir-lhe um parecer sobre a peça, lhe falou do interesse que o museu português teria em poder mostrar o inédito da artista barroca. “Como o galerista argentino só ia precisar da obra em Outubro, decidimos aproveitar esta janela de oportunidade, que dificilmente voltará a surgir”, contou ao PÚBLICO.

O próprio Joaquim Caetano, um especialista em arte antiga e um dos três comissários da exposição Josefa de Óbidos e a Invenção do Barroco Português, realizada no MNAA em 2015, vai fazer esta sexta-feira, dia da inauguração, pelas 18h00, a primeira de duas apresentações da obra — a segunda estando já agendada para o dia 3 de Outubro, à mesma hora. Irá então explicar por que A leitura da sina do Menino Jesus é “uma obra absolutamente inédita e de grande qualidade”, que tem “um grande interesse iconográfico e aborda um tema raríssimo”, não apenas na produção artística da autora como na pintura da sua época.

A leitura da sina do Menino Jesus é uma pintura de cores muito vivas, feita sobre uma placa de cobre de pequenas dimensões (22 x 29 cm), de que se sabe agora apenas que se encontrava numa colecção privada na Alemanha quando foi levada a leilão pela casa Plückbaum, e que tinha sido comprada já fora de Portugal na década de 1980.

A pintura representa uma cena pouco comum na iconografia da época: durante a estada da Sagrada Família no Egipto, uma mulher cigana pega na mão do Menino Jesus ao colo da Virgem para lhe ler a sina, rodeados por duas outras mulheres e duas crianças.

Joaquim Caetano explica que a obra, datada de 1667, foi feita numa década em que “a artista se dedicava mais a pinturas de grandes dimensões e grandes retábulos e menos ao pequeno formato”. E avança mesmo a hipótese de Josefa de Óbidos ter pintado esta cena “para uso próprio no contexto do seu gosto por um tema não muito canónico”.

Mesmo assim, “na pintura flamenga do final do século XV e até nalguma pintura portuguesa das décadas a seguir fez-se muitas vezes a associação de personagens de etnia cigana com a passagem da Sagrada Família pelo Egipto”. O historiador de arte realça, de resto, a proximidade semântica entre os termos “gitanos” e “egiptanos”. E nota que o episódio bíblico do Egipto é muitas vezes enunciado na gravura e na pintura devocional do século XVI através da colocação do “bernó”, o chapéu tradicional cigano que parece um grande disco decorado com faixas de tecido colorido. Luis de Morales (c. 1510-1586), em Espanha, António de Holanda (o pai de Francisco de Holanda) e Diogo de Teixeira (1540-1612), em Portugal, são pintores que representaram a Virgem com vestes e adornos ciganos.

“O que é novo no tempo da Josefa é que conhecemos, não na pintura mas na literatura, vários exemplos em que aparece não só a Virgem a ser acolhida pelas ciganas no Egipto mas também o tema específico em que uma cigana pede a mão do Menino para lhe anunciar a sua vida de paixão e posteriormente de glória, como quem lê o destino”, acrescenta o historiador ao PÚBLICO, citando autores como os espanhóis Frei José Jesus de Maria (1562-1629) e Antonio de Escobar y Mendoza (1589-1669), ou as portuguesas Soror Maria de Mesquita Pimentel e Soror Violante do Céu (1601/7-1693).

“[O professor e escritor] Mendes dos Remédios nota que um dos temas mais recorrentes dessa época era esta adoração das ciganas à Virgem, que terminava com uma dança, e também essa cena um tanto ou quanto picaresca da leitura da sina, mas que era algo de que o público gostava”, acrescenta o director do MNAA. “Há toda uma conjuntura literária e cultural que, no contexto cultural e religioso português da época, ajuda a explicar esta pintura de tema absolutamente inédito”, conclui.

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