José da Câmara canta as “estrelas-guia” da sua vida em disco e ao vivo

O fadista José da Câmara estreia hoje ao vivo no Museu do Fado, às 19h, o seu novo disco Estrelas-Guia, onde fala da família, dos amigos e dos caminhos percorridos. De bar em bar ou de Lisboa a Borba, guiado pelo fado.

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José da Câmara JOANA LINDA

Cinco anos depois de gravar Até Sempre Sr. Fado, o disco com mais fados tradicionais da sua carreira, José da Câmara apresenta agora Estrelas-Guia, um “olhar para trás” por onde passam referências familiares, geográficas e de amizade. O disco chega às lojas esta sexta-feira, dia em que é apresentado ao vivo no Museu do Fado, pelas 19h.

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A capa do novo disco

O título do disco exprime, de algum modo, gratidão, diz José da Câmara ao PÚBLICO: “Quando nós chegamos aos 50 anos (que já são 52) e aos 30 de carreira (que já são 33), dá para olhar para trás e já há muita história para contar, muitos caminhos percorridos. E muita gente que já cá não está e que foram realmente estrelas-guia da minha vida.” Nesses caminhos estão Borba, “terra do coração”, que lhe inspirou um fado (Borba, com letra e música do próprio fadista), e a sua Lisboa natal, lembrada em Nossa cidade é Lisboa (de Diogo Quadros) e em Que saudades tenho eu, onde José da Câmara (com música de Miguel Ramos), recorda périplos nocturnos de outrora, fadistas e não só, do Páteo das Cantigas de João e José Pracana, até ao Xafarix, ao Napoleão ou ao Brim Bar.

Ansiedades e o conforto do público

O disco abre com uma espécie de conversa com o público, em Estamos aqui: “Ainda há pouco era menino/ E tive por meu destino/ Passar a vida a cantar”. Ele explica: “Pedi ao Manuel Gouveia, que escreve muito bem, que me fizesse um fado para um começar o espectáculo, lembrando sempre aquela música extraordinária do Paulo de Carvalho, Gostava de vos ver aqui [“Gostava de estar aí/ A ver o que se passa aqui, no palco/ P’ra não fazer juízo errado/ Pois isto de cantar,/ É muito mais difícil/ Cá deste lado]. Um fado que me apresentasse de cada vez que eu entrasse no palco. Um bocadinho a falar sobre a minha vida: ‘Não julguem tudo ser rosas/ Pois as rosas são espinhosas/ E ferem de quando em vez/ Mas no fim deu tudo certo/ Nascem rosas num deserto/ Quanto canto p’ra vocês’. E também falo nas ansiedades, no medo, no pânico – já tive ataques de pânico em palco – e também no bom que é olhar para a frente e ver o público.”

Os momentos de ansiedade que José da Câmara refere não são apenas coisa do passado. “Tem fases. A primeira vez que fui à televisão, em 1986, foi a convite do Paulo de Carvalho, estava eu na revista (era colega da Helena Isabel, que veio a casar com ele). Eu tinha 19 anos e lembro-me perfeitamente de estar com um nervosismo um bocado irresponsável. Mas quando olhei para o Paulo de Carvalho, ele estava nervoso, a suar, e interroguei-me: como era possível uma pessoa destas estar nervosa? E ele disse-me: ‘Quando chegares à minha idade, vais ver.’ Já cheguei à idade dele e é exactamente isso: cada vez temos menos margem para falhar, temos mais responsabilidade.”

O lento eclipse dos mestres

Por razões de proximidade (amizades, família) o disco tem três convidados cantores e outros três músicos, que se juntam ao trio de fado que aqui o acompanha: Luís Petisca na guitarra portuguesa, Armando Figueiredo na viola e Vasco Sousa na viola baixo. Os cantores são Teresa da Câmara (sua sobrinha), António Pinto Basto e Rodrigo; e os músicos são Jaime Santos (viola), Dinis Lavos e Diogo Quadros (guitarra portuguesa). Teresa da Câmara canta com o tio o fado que este escreveu para o seu pai (e avô dela), o patriarca de família e destacada figura do fado Vicente da Câmara (1928-2016). A estrela da minha vida, com música de Raúl Ferrão, celebra a sua memória, tal como Aconchegado à minha mãe (letra e música de José da Câmara), procura lembrar os tempos em que, criança, sentia a protecção da mãe, Maria Augusta (1929-2011). É aliás a ambos, pai e mãe (“estrelas que sempre me guiaram”), que ele dedica este disco.

Rodrigo, também em dueto, canta com ele Horas desta vida (no Fado das Horas, com música de Maria Teresa de Noronha, de quem José da Câmara é sobrinho-neto). “O Rodrigo é um mestre. E grande parte dos mestres estão a ir-se embora, a cruzar a esquina, estão-nos a faltar aquelas tertúlias à mesa com os mais velhos a ensinarem-nos alguma coisa. Graças a Deus ainda temos o Rodrigo, a Maria da Fé, ainda temos alguns com quem aprender. Eu nunca tinha gravado o Fado das Horas e achei que tinha de o gravar com alguém muito especial, que me ensinasse a cantar esse fado. Pedi ao Rodrigo e ele, simpaticamente, aceitou. E a forma como ele canta aquilo é de arrepiar. Aliás, é ele que começa. O mestre primeiro. Isto para mostrar que, ao fim de 30 e tal anos de carreira, nós não sabemos nada. E temos tanto, tanto para aprender.”

Entre a saudade e o medo

Quanto a António Pinto Basto, uma “amizade de há muitos anos”, cantou Como nasceu o fado com José da Câmara, que este já cantava há muitos anos. Aliás, a música é dele, com letra de Francisco Rodrigues. “Fiz ali um corrido com umas nuances, estilizado.”

Outro tema integralmente escrito por José da Câmara é Medo, que antecede no disco o tema dedicado à sua mãe. “São o inverso um do outro. Quando eu era pequenino, não tinha medo de nada: tinha a minha mãe e o meu pai. O medo vem depois. Vem quando começamos a ser mais adultos e a ter noção do que é a vida, das preocupações. A ansiedade de saber se vamos conseguir.” E José da Camara reconhece que ainda hoje é marcado por ansiedades. “Não sou uma pessoa muito positiva, estou sempre preocupado com o futuro. Tenho um defeito: não me preocupo com o hoje. Estou sempre a olhar para trás (‘ai que saudades eu tenho’) ou para a frente (‘ai que medo eu tenho’).”

Há no disco um fado com nome de pessoa, António Batista, que é, diz José da Câmara, dos fados do disco, “o único que não é inédito”: “Lembro-me de ser cantado na voz do João Braga [a letra é de José Luís Gordo e a música de José Fontes Rocha]. Gravei-o apenas porque gosto. Faz-me lembrar quando eu ia (agora vou menos) a Borba. Parece que estou a ver ali o contrabandista [é disse que o fado fala] a passar o Caia com uma malinha. Hoje em dia é mais transferências bancárias, jactos particulares, internet.

Um tributo a um amigo

O disco fecha com um tema que é uma carta aberta a alguém que já partiu: Amigo. “Não é fado, é uma balada que eu fiz para um grande amigo meu que ainda gravou comigo o Até Sempre Sr. Fado, na viola baixo, Filipe Vaz da Silva [que morreu em 3 de Março de 2015, vítima de cancro]. Estou a falar disto pela primeira vez passados quatro anos, porque fiz esta música e esta letra para mim, para os mais íntimos. Fui vê-lo ao hospital, um ano antes de ele morrer, e cheguei a casa triste. E isto já aconteceu a muitos de nós: estarmos ao pé de alguém que sabemos que está a sofrer mas que está com uma força da natureza, uma coisa incrível. Sentimo-nos impotentes ao lado de pessoas que se estão a ir embora – e nós não queremos que se vão embora – e elas estão, como heróis, a sorrir e contar anedotas até ao último minuto da sua vida. Foi por isso que decidi gravar. Esta letra é minha, e é para o Filipe, mas é também para todos os Filipes das nossas vidas.”

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