A liberdade de apenas ser

Há 20 anos, para além dos calções e chinelos, o João traria para a faculdade uma t-shirt branca sobre o corpo e um saco de plástico pela mão. Hoje, passados 20 anos, a realidade nos meios universitários evoluiu para melhor. Hoje, se o João entrasse de toalha em riste num anfiteatro cheio, ninguém daria por ele.

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Voltei a vê-lo este Verão, 20 anos depois, 20 anos depois da faculdade e das tropelias, 20 anos depois das encruzilhadas e das partidas da vida. 

O João estava na mesma, em tronco nu, acabado de chegar da praia, cheio de areia da ponta dos cabelos aos dedos dos pés, feliz por apenas ser assim mesmo: um rapaz nascido e criado à beira-mar com pouco mais para vestir para além de uns calções de banho e uns chinelos, que o tronco é para cobrir de sol e calor sobre uma pele de sal.

Há 20 anos, para além dos calções e chinelos, o João traria para a faculdade uma t-shirt branca sobre o corpo e um saco de plástico pela mão na vez de uma mochila para levar os livros e, de vez em quando, a toalha de praia aos ombros para sinalizar a quem o visse a sua origem e destino, o seu mantra, paixão, crença, fé e religião. Obviamente, o ambiente universitário, soturno, rígido, subjugado a regras, protocolos e subserviências não estava preparado para a insolência do João.

Mas o João não era insolente. O João era o João, criado numa casa sem regras para não ter regras, sem limites, muros ou fronteiras. O João era um filho de Abril cheio de liberdade como o país que nos viu nascer: liberdade de pensar, agir e decidir, liberdade de vestir como bem entendesse, comer como bem entendesse, liberdade de sair e chegar a casa a qualquer hora, liberdade para aprender na escola, em casa, na rua, na vida, longe da prisão dos relógios.

Amigo de todos, para o João as portas estavam sempre abertas, dividindo as noites entre quartos e casas alheias, fazendo-se irmão dos amigos e filho de outros pais, partilhando a paz e alegria das vidas simples a troco de um pouco de chão onde dormir sossegadamente feliz.

Talvez por ser demasiadamente virgem, ingénuo ou imaturo, para o João foi difícil compreender o porquê da rejeição natural, quase instintiva, dos professores que consigo se cruzavam na faculdade. Talvez por não ir às aulas, talvez por olhar a universidade como um lugar de troca de saberes, de discussão e debate e não um templo de absorção de conhecimento tão empedernido como indiscutível, tão adquirido e certo como bolorento.

Talvez por não encontrar sentido na existência de regras, horários e prazos num meio onde, aos olhos da lei, são todos adultos. Talvez por se achar ao mesmo nível dos professores, com quem pretendia partilhar conhecimentos e experiências ao mesmo tempo que os tratava por tu. Sem excepção. Talvez por adormecer nos anfiteatros depois de longas noites de copos, sonhos e utopias, roncando a bom roncar para gáudio geral dos colegas de curso mas nem por isso dos professores.

Reprovado antes sequer de começar, o João viu-se aflito para acabar a licenciatura. Condenado à partida por não se cingir a protocolos e regulamentações, ou por nem sequer pensar neles ou ter consciência dos mesmos, o João viveu à frente do seu tempo, recebendo como paga a discriminação de um sistema dito de ensino superior mas nem por isso preparado para lidar com a diferença, para querer conhecer e compreender a diferença.

Hoje, passados 20 anos, a realidade nos meios universitários, e na sociedade em geral, evoluiu para melhor. Hoje, se o João entrasse de toalha em riste num anfiteatro cheio, ninguém daria por ele entre vegans, góticos, metaleiros, alunos transgénero, budistas, alunos de intercâmbio, indies, entre tantos outros. 

Hoje, o João seria apenas mais um. E se por um lado as suas perspectivas de futuro podiam ser melhores, a verdade é que a vida e respectivas encruzilhadas não o impediram de ser feliz. Não o impediram de continuar a ser o João que sempre conheci, cheio de areia dos cabelos aos pés a despejar mar e praia por cada poro enquanto o sol se põe vezes e vezes sem conta, deslumbrado por estar vivo e deslumbrado com a vida, feliz por apenas ser, desde sempre até hoje, quando finalmente o voltei a ver.

E não, ao longo destes anos o João nunca reclamou ou protestou, dando ao mundo a liberdade de assim ser enquanto esperava pelo seu tempo e hora, a hora da aceitação, da inclusão, da diferença. Hoje o João já não é diferente, é um de nós.

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