A democracia não é só espectáculo

A ligeireza, os golpes teatrais e a demagogia eleitoralista de Boris Johnson fazem temer o pior, podendo precipitar o Reino Unido e a Europa num abismo sem saída pacífica

Nas ruas de Londres, Hong-Kong e Moscovo, este fim-de-semana foi de manifestações a favor da democracia, reprimidas com violência crescente pelos regimes chinês e russo. Se não é já surpreendente a revolta de populações submetidas ao arbítrio ditatorial em países onde essa ordem está há muito implantada, uma parte significativa do povo britânico – que é aquele que há mais tempo convive com as instituições e rituais da democracia – sentiu também a necessidade de levantar-se contra um enxovalho aos valores democráticos: a suspensão temporária do Parlamento, esse capricho autocrático de Boris Johnson a que a Rainha se sujeitou.

Obviamente, as ditaduras chinesa ou russa e a democracia britânica não são de todo comparáveis. Tal como não o são os riscos que correm os cidadãos dos três países ao manifestarem publicamente os seus protestos. Mas o gesto de desprezo de Boris Johnson em relação à liturgia democrática britânica aproxima-o simbolicamente das tentações autoritárias enraizadas em países como a Rússia e a China. E esse é um novo sinal dos perigos – veja-se a recente e explosiva expansão dos movimentos populistas, xenófobos ou ditos iliberais através da Europa – que ameaçam os espaços tradicionalmente democráticos, tendo como precedente mais poderoso os Estados Unidos da América.

Para além das opiniões de cada qual relativamente ao “Brexit” e da legitimidade do resultado do referendo que lhe abriu caminho, não é possível ignorar a dramática divisão da população britânica sobre o assunto, divisão acentuada pela complexidade das opções que o próprio “Brexit” foi colocando (e de que uma das mais delicadas é a fronteira entre as duas Irlandas, com os seus riscos, aliás já manifestados, de um regresso à guerra). Ora, face a tudo isto, a ligeireza, os golpes teatrais e a demagogia eleitoralista de Boris Johnson fazem temer o pior, ou seja, um irresponsável sonambulismo que poderá precipitar o Reino Unido e a Europa num abismo sem saída pacífica e muito menos proveitosa para ambos os lados.

Este é um dos reflexos mais assustadores de um fenómeno em que as novas tecnologias de informação e as redes sociais potenciam o arsenal da política espectáculo e tornam os rituais da democracia uma caricatura de si próprios. E, de novo, não faltam os indispensáveis exemplos do costume: Trump, Bolsonaro, Johnson, Salvini (que parece recuperar a seu favor o novo caos da política italiana entre o M5S e o PD), Putin, Erdogan e todos os reais ou potenciais candidatos ao novo carnaval político.

Há, claro, quem escape a esta aparente fatalidade, mas receia-se que seja sobretudo pela arte das aparências e a sofisticação da pose: é o caso de Macron, com a recuperação que conseguiu fazer da cimeira do G7, apesar do duelo que Bolsonaro, em jeito de cafajeste, com ele travou a propósito da Amazónia. Mas não será tudo isto – incluindo alguns sinais promissores, como a inesperada discrição de Trump e a vaga promessa de um arrefecimento das tensões entre os EUA e o Irão – apenas um outro lado da política espectáculo?

É também o que não falta em Portugal, com a nova retórica de Costa – e de Jerónimo ou Catarina – a propósito da “geringonça”, como um passado que não será possível reeditar com as mesmas formalidades. Por outro lado, sem querer deixar trair as suas verdadeiras expectativas, Costa parece intimidado com o fantasma da maioria absoluta (e dos seus antecedentes impopulares, o que suscitou uma reprimenda muito azeda de Sócrates ao seu antigo colega de Governo). De qualquer modo, entre o desejo e o fantasma de Costa há também a necessidade de contabilizar votos pelos parceiros à esquerda (o que explica a ambiguidade do que todos dizem sobre o balanço contraditório desta legislatura). O espectáculo promete, portanto, continuar. Só que a política e a democracia não são apenas espectáculo…

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