Sobrecarga

A ultrapassagem dos limites legais de horário não é nem fiscalizada, nem caucionada por ninguém. A sobrecarga é um vício antigo da gestão portuguesa.

Aquando da greve dos motoristas chegou-me às mãos um trabalho recente (“Wage inequality and directed technological change: Implications for income distribution”) dos economistas italianos Cristiano Antonelli e Giuseppe Scellato, que estuda a relação entre a dimensão das firmas, a diferença salarial e as dinâmicas de inovação.

Uma explicação habitual para o maior prémio salarial de empresas de maior dimensão passa pelo poder de barganha (tanto maior quanto a quantidade de trabalhadores). Alguns estudos ligam também a relação entre inovação e tamanho da empresa com esse poder de barganha. Segundo essa linha de raciocínio, as firmas maiores optam por retirar maior rendimento pela inovação em detrimento da intensidade do trabalho. Afinal, nem todas as firmas trabalham em países em que se mobilizam os militares para fazer frente a situações de greve, sendo que resolver o descontentamento pela força tem consequências (aparentemente, em Portugal é bem visto e bem recebido).

A greve dos motoristas mostrou a escolha do Governo pela exploração da intensidade do trabalho (exposta em declarações ministeriais), a qual não pode ser desligada da estratégia de concentrar as dinâmicas de inovação em pequenas “start up” e “spin off”, enquanto se mantém uma estratégia de precariedade na Ciência, bem como outras situações de predomínio.

A escolha pela intensidade do trabalho (tão bem testemunhada nos horários dos motoristas, nos seus riscos e consequências) determina muito do país que somos e continuaremos a ser.

Já percebemos quem quer ser o partido de quem manda, falta conhecer qual a escolha dos que parecem condenados a obedecer. Quando a social-democracia se constrói com requisições civis na Ryanair, não será difícil perceber o percurso e o destino.

Simultaneamente, para quem tinha tanta dificuldade em perceber a “traição das classes trabalhadoras” e os seus problemas de representação, esta greve demonstrou lições que continuam por aprender. Há quem confunda o mensageiro com a mensagem, tal como há quem só veja o gavião no pardal.

Não por acaso, este século começou com uma crise, em que as pessoas gritavam nas praças “no nos representan”. Na política, tal como no sindicalismo é bom que se perceba quais as origens dessa crise de representação.

Em Portugal, o predomínio da escolha pelo aumento da intensidade do trabalho faz-se sentir desde as universidades (cujos reitores optaram por esta via há muito tempo), passando pelos hospitais, empresas de transporte e muitos outros setores. A frase “trabalha-se é pouco” está incrustada, associada à ideia de que importa é carregar na carga horária e não na qualidade do que se faz.

A ultrapassagem dos limites legais de horário não é nem fiscalizada, nem caucionada por ninguém. A sobrecarga é um vício antigo da gestão portuguesa, que viu na precariedade o seu melhor aliado, conjugado com a limitação da negociação e contratação coletiva.

Tudo isto tem consequências económicas e não é por acaso que os valores de precariedade continuam elevados.

Por muito que custe a alguns, a verdade é que os motoristas de matérias perigosas conseguiram demonstrar diversos resultados da ação coletiva. Não por acaso, aquando da primeira greve abordou-se a construção de oleodutos (o que me faz reportar novamente para o trabalho de Antonelli e Scelatto sobre a relação da barganha com a inovação).

Já sei que os defensores da intensidade do trabalho irão alertar para o nível de desemprego. Não deixa de ser curiosa esta transformação de pseudo-liberais em luditas, mas também aqui os resultados demonstram que a relação pode ser a inversa (mais inovação, mais e melhor emprego).

Ações como as que foram tomadas testemunham um aliciamento de um velho país, alicerçado na exploração da intensidade do trabalho. A pergunta que cada um deve fazer é se vota por esse país.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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