O Governo governou

Mais complicada e até perversa é a investida do Ministério Público contra um sindicato. Os estatutos estão ilegais? Não foram aceites pelo Ministério do Trabalho?

Na greve dos motoristas de matérias perigosas e de outras mercadorias, o Governo não se excedeu. Governou. Exerceu a autoridade inerente a um Estado de direito democrático. Respeitou a lei e manteve a ordem social em democracia. Pode até ter surpreendido positivamente, uma vez que tem no seu currículo más prestações em anteriores momentos em que o Estado falhou em questões de segurança nacional: incêndios de 2017 e assalto de Tancos.

Foi musculado? O que diriam os comentadores e o que pensariam os cidadãos, se o Governo não tivesse agido e o caos da ruptura de abastecimentos e de transporte de pessoas se instalasse? Usou propaganda? Qual é o problema? A propaganda é inerente à política, a segunda não existe sem a primeira. A propaganda é a técnica de fazer passar a mensagem em política. Desrespeitou a lei? Não, neste caso. Usou, respeitando os seus limites, os recursos da legislação. A democracia é a forma mais racional de governação. E o edifício legal democrático tem de estar preparado para não se instalar o caos social nem o livre arbítrio. Pelo que se viu, o edifício legal português estava preparado. Mais complicada e até perversa é a investida do Ministério Público contra um sindicato. Os estatutos estão ilegais? Não foram aceites pelo Ministério do Trabalho?

Fez-me impressão muitos dos comentários sobre a actuação do Governo. Alguns, à direita, ditados pelo chico-espertismo, como foi a rapidez do CDS em querer alterar a lei da greve. Outros por pura incapacidade. Rui Rio diz que não é político mediático (coisa impossível nos dias de hoje). Ainda bem que o confessa, pois cada vez que tenta é confrangedor. Assim como é preocupante assistir à actuação (ou ausência dela) nesta greve do partido que ainda tem o maior grupo parlamentar na Assembleia da República, o PSD.

Já à esquerda, foi surpreendente o esquerdismo larvar que saiu da toca e os múltiplos comentários eivados de uma ingenuidade política pueril. Fico sempre perplexa com aqueles que acham que o Estado só deve ser forte na sua dimensão social. E se o Governo é de esquerda está proibido de exercer a autoridade de Estado e de garantir a segurança das populações.

O PCP teve equilíbrio. Não deixou de defender o direito à greve, mas o sindicato de motoristas que influencia, através da CGTP, nem paralisou nem abandonou o processo negocial. Já o BE limitou-se a assumir o seu lado radical e a sua costela esquerdista. Aliás, nesta greve, ficou visível a forma como o BE e o PCP estão no bolso de António Costa. É a consequência de terem aceitado assinar um acordo parlamentar com o PS para que os socialistas fossem governo, que foi a resposta à radicalização à direita feita por Passos Coelho, quando assumiu que queria ir além da troika.

A causa dos sindicatos dos motoristas é justa. Mais, é justíssima. Todos os trabalhadores portugueses têm de ser tratados com dignidade pelos patrões e não apenas os funcionários públicos. É também verdade que no caso dos motoristas de mercadorias em geral, mas sobretudo os de matérias perigosas, tem havido uma exploração desavergonhada e uma provocatória afronta à sua dignidade.

É mesmo extraordinário o que ficou evidente nesta greve: foi privatizado um sector como a energia, estratégico em termos nacionais e de soberania, e continua a ser permitida a absoluta exploração de quem assegura o seu transporte. A relutância da Antram em reconhecer direitos evidentes que assistem aos motoristas foi despótica e incendiária.

É, portanto, perfeitamente justo que os motoristas lutem pelos seus direitos e tenham feito a greve em Abril. Só perderam a razão pela forma como a fizeram agora. Abandonar o processo negocial, ao qual se comprometeram por acordo assinado então, para introduzir novas reivindicações (negociação de aumentos para 2021 e 2022), declarando uma nova greve, é contra tudo o que são as regras. O sindicalismo é um dos meios de representação social e um dos pilares da democracia. Pressupõe regras e o respeito por estas, como tudo em democracia. Romper um processo negocial e avançar para uma nova greve é pôr em causa a própria legitimidade democrática.

Vivemos numa época em que campeiam os radicalismos populistas de extrema-direita e de extrema-esquerda. Hoje em dia, a complexidade das sociedades é cada vez maior e, por isso, mais complexa, mais difícil, mais volátil e mais voraz a governação democrática. Provavelmente, sob os nossos pés está a nascer um mundo novo. Mas, para o que são os parâmetros de um Estado de direito democrático hoje em dia, o Governo fez o que lhe competia: assegurou a ordem pública e o normal funcionamento da sociedade.

Num ano eleitoral, como o que Portugal vive em 2019, tem sido grande a apreensão sobre como o radicalismo populista iria ganhar palco. Foi pelo sindicalismo que surgiu. Vamos ver se o dr. Pardal Henriques acaba deputado. O Ministério Público está a contribuir para essa eleição.

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