Boris

Como é que, perante a decisão mais importante para o destino do Reino Unido desde há várias décadas, um primeiro-ministro decide neutralizar o Parlamento?

Boris Johnson tornou-se primeiro-ministro do Reino Unido no final de Julho. A entrada do antigo mayor de Londres, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e uma das figuras da campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia em 2017 no número 10 de Downing Street não surpreendeu ninguém. Na verdade, há muito que Boris se perfilava como o candidato mais forte entre a ala mais radical do partido Conservador para suceder a Theresa May. Mas a sua decisão esta semana de suspender o Parlamento por mais de um mês, precisamente na altura em que finalmente se vai ter que definir a forma como o país vai sair da União Europeia, surpreendeu tudo e todos. Incluindo no seu partido. A demissão imediata de Ruth Davidson da liderança dos conservadores escoceses não é só um golpe profundo nas expectativas eleitorais do partido na Escócia; é um sinal do mal-estar profundo que esta decisão provocou entre as hostes conservadoras.

Como é que, perante a decisão mais importante para o destino do Reino Unido desde há várias décadas, um primeiro-ministro decide neutralizar o Parlamento?

A resposta a esta pergunta vai ocupar gerações de historiadores e cientistas sociais. Tentar prever as consequências desta decisão, uma decisão vista por muitos como um expediente para calar os adversários de uma saída desordenada da UE, é um exercício espúrio. A verdade é esta: ninguém sabe. Mas há uma série de coisas que já podemos tomar como certas nesta altura.

Uma coisa que sabemos é quem é Boris Johnson. Boris não é Trump. A autenticidade de Trump – grotesca para alguns, reconfortante para outros – está ausente em Boris. Boris representa um papel; Trump é o papel que representa. O papel que Boris representa é um clássico inglês. É o papel do mau aluno que se safa sempre com a sua esperteza e inabalável confiança. Produto típico da elite inglesa, Boris é o aluno que não tendo decorado as suas falas para a peça de teatro da escola, se safa na noite de estreia inventando um novo papel com muito mais piada do que o papel original. A diferença entre Trump e Boris é esta. Boris, consciente de que não se preparou como devia, usa uma artimanha sofisticada para fazer crer os colegas que recorreu a esta chalaça porque quis e não porque não tinha alternativa. Ou seja, Boris usa o humor de forma calculada e premeditada para esconder do público factos e realidades que lhe são adversos. Já Trump nunca foi capaz de decorar uma fala na vida (e nunca precisou). É isto que torna Boris potencialmente mais perigoso do que Trump. Boris é muito mais reflexivo e ardiloso do que o seu congénere norte-americano. Embora, é certo, ambos partilhem a mesma falta de escrúpulos e relação difícil com a verdade. E os Estados Unidos sejam a nação mais poderosa à face da terra. O que faz de qualquer decisão de Trump potencialmente mais grave do que quaisquer decisões que Boris possa tomar.

Outra coisa de que podemos estar certos é que a confiança na Constituição inglesa se evaporou. Poucos são aqueles que hoje em dia acreditam que o conjunto de textos jurídicos que dá pelo nome de “Constituição inglesa” possa subsistir incólume aos eventos dos últimos dois anos e sobretudo ao que se passou nas últimas semanas. É certo que o Reino Unido nunca terá uma Constituição como a nossa. Mas é quase certo que um dos temas políticos da próxima década no Reino Unido vai ser o da reforma constitucional. Se há algo que o golpe de Boris deixou claro, incluindo para os membros do seu próprio partido, é que já não basta confiar na honestidade e honra individual dos representantes. Pelo contrário, urge robustecer o regime político contra o oportunismo dos agentes políticos.

Outra coisa que ficou clara foram os limites políticos da Coroa inglesa. Um representante eleito não teria assinado de cruz o pedido de suspensão do parlamento. A Coroa, apesar do extraordinário prestígio e capital simbólico que a Rainha Elizabeth tem, acabou por revelar ter uma influência muito limitada no caso de um conflito aberto entre o poder executivo e o poder legislativo. Mesmo quando tal conflito coloque em questão a democraticidade do regime como um todo. Mesmo quando tal conflito possa pôr em perigo o futuro da União.

Uma outra coisa de que podemos estar certos nesta altura é que a cultura política inglesa é mais parte do problema do que da solução. A cultura política inglesa é hoje em dia um caldo tóxico, um caldo alimentado durante anos por políticos e comentadores e que transbordou depois do referendo. É uma cultura política em que a agressividade para com o Outro e a diferença se normaliza a cada dia que passa. Em que as frustrações e razões de queixa com as condições de vida se vão continuar a virar contra os bodes expiatórios do costume. Em que a glorificação mitológica do legado colonial vai continuar a fazer caminho. Em que o mito da pequena ilha que, sozinha e com Churchill ao leme, derrotou Hitler vai manter-se como uma metáfora central da identidade nacional. Uma amálgama de ideias, mitos e heróis que, complacente e paroquial, pouco vai ajudar um país que, uma vez fora da UE, vai ter que encontrar para si um novo papel na cena internacional e na economia global.

E a outra coisa que sabemos é que ainda há tempo para se negociar um acordo para a saída do Reino Unido da União Europeia. Mas, com a jogada de Boris, este tempo tornou-se agora mais escasso. Será que ainda vão a tempo de evitar um no deal? Todos esperamos que sim. Ninguém deseja uma crise económica ou o regresso da violência armada à Irlanda do Norte. Mas, neste caso, vão ter que se resignar com o acordo possível, vendido domesticamente como uma vitória, mas na realidade apenas o primeiro passo de longas e difíceis negociações que se prolongarão por anos a fio. Vale a pena acompanhar com atenção o que se vai passar até 31 de outubro no outro lado do canal da Mancha – ou, como se diz do lado de lá, o English Channel. 

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