Uma ópera para contar os primeiros dias de Évora

A estreia da ópera Geraldo & Samira, com música de Amílcar Vasques-Dias e libreto de Helena da Nóbrega, encerra este fim-de-semana o programa Artes à Rua.

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Marco Alves dos Santos é Geraldo DR
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Natasa Sabalic é Samira DR
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Évora chamava-se ainda Yabura quando Geraldo Geraldes, dito o “sem-pavor”, desembainhou a sua espada e conquistou a cidade para o jovem país liderado por D. Afonso Henriques. Disso nos dá conta a ópera Geraldo & Samira, uma criação do compositor Amílcar Vasques-Dias e da libretista Helena da Nóbrega, em cena sábado e domingo no Jardim da Palmeira, em Évora, no encerramento do festival Artes à Rua. Mas fala-nos também, de forma crucial nos tempos que correm, de um território que foi habitado por outros povos antes de encaixar no território português. Fala de guerras que são tanto pelo território e pelas linhas de fronteira quanto pelo domínio de uma cultura sobre outra. Portugal tenta expandir-se para sul, conquistando novos lugares ao reino muçulmano do Al-Andaluz. E Geraldo, cativado por esse desejo de D. Afonso Henriques e querendo cair nos seus favores, aproveita a descontracção de um serão musical na alcárcova, por entre canções cristãs, mudéjares e hebraicas, para raptar Samira, a filha do alcaide de Yabura, a fim de usá-la como meio de chantagem e forçar a sua entrada vitoriosa na cidade.

É por aqui, por esta primeira cena de festa e planos traiçoeiros, que se inicia Geraldo & Samira. “O libreto começa, de uma maneira mais ou menos ficcionada [que não dispensa, naturalmente, os factos dados como verdadeiros], por percorrer os princípios de Yabura, desde os povos que vieram para a Península Ibérica, muito anteriores aos romanos e aos celta-iberos”, diz Amílcar Vasques-Dias ao PÚBLICO. Essas liberdades ficcionais condizem, de resto, com a “personagem um tanto lendária” de Geraldo, argumenta o compositor, apesar dos “dados históricos que atestam da sua existência”. Acontece apenas que toda a trama da ópera, desenvolvida de acordo com as mais clássicas narrativas trágicas, leva a que esse momento inicial acabe por desencadear uma história de amor, traição e assassínio que, no final, como é fácil de imaginar, há-de conduzir Geraldo aos seus intentos.

Foram oito meses em que Amílcar Vasques-Dias e Helena da Nóbrega criaram em simultâneo libreto e partitura da ópera, após um período de investigação. E Vasques-Dias aproveitou o contexto da festa inicial para lançar uma sonoridade de música árabe-andaluza e sefardita, adaptando canções do reportório do cante flamenco numa longa ária cantada por Samira, que alastra depois ao registo da orquestra de 20 elementos. Desde os seus primeiros momentos, Geraldo & Samira chamará aos diferentes placos instalados no Jardim da Palmeira a comunidade eborense, quer através da integração do Coro Eborae Música e da Companhia de Dança Contemporânea de Évora (com coreografia de Nélia Pinheiro), quer pela abertura do espectáculo a vários figurantes cativados por associações culturais locais, perfazendo perto de cem participantes.

Com direcção musical do maestro Brian MacKay e encenação de F. Pedro Oliveira, Geraldo & Samira tem como protagonistas Marco Alves dos Santos e Natasa Sibalic, as duas vozes principais que seguem uma partitura de Amílcar Vasques-Dias que não se deixa aprisionar pela tentativa de recriação da música daquela época. Antes privilegia, aliás, as suas próprias preferências, apontando a “uma certa sonoridade metálica” garantida pela presença de vários instrumentos de sopro – a que se juntam percussão, harpa, piano ou viola-baixo. “A nível de instrumentos tem algo da orquestra clássica, mas também algo de uma orquestra com um som mais específico – tem que ver com uma concepção mais aberta ou contemporânea.”

Se a música não se coíbe de retratar “a convivência – nem sempre pacífica – entre a cultura islâmica, a cristã e a hebraica”, também a palavra cantada aponta para a diversidade de povos que viviam na região, fazendo uso de português, um hispano-árabe e um galaico-minhoto – sem preocupação de rigor científico – que permita imaginar a vida no século XII. Uma outra forma de lembrar que o chão que pisamos já conheceu muitos outros pés.

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