Gestação de substituição: a arte de procrastinar

A AR fez um original “veto de gaveta”: aprovou uma lei que o Presidente da República nunca poderia promulgar e relativamente à qual o TC, com enorme probabilidade, se vai pronunciar pela inconstitucionalidade.

O Presidente da República remeteu ao Tribunal Constitucional (TC) o Decreto da Assembleia da República (AR) que visa alterar o regime português da gestação de substituição e que tenta adequá-lo à Constituição, uma vez que, em Abril de 2018, aquele Tribunal considerou inconstitucional o regime vigente desde Agosto de 2017.

Recorde-se que, em Portugal (seguindo-se a tendência Europeia), nunca se aceitou um regime mercantil de barrigas de aluguer ou de mercado de úteros (que existe, por exemplo, nos EUA), sendo a gestação de substituição excepcional (carece de autorização e pareceres prévios) e altruísta (no sentido de que a gestante de substituição não recebe qualquer pagamento pela cedência do seu útero aos beneficiários).

Porém, a principal discussão (jurídica e política) tem girado em torno da possibilidade de a gestante de substituição revogar o seu consentimento após o parto (sendo certo que, no regime de 2017, o podia sempre fazer, como qualquer outra mulher grávida, no prazo legal para a interrupção voluntária da gravidez, mas não após o decurso desse período). Este é o ponto mais delicado, e os Deputados prestaram, desde as primeiras intervenções da AR na matéria, um mediano serviço, ao menos aos olhos daqueles, como eu, que consideram da máxima relevância consagrar um (adequado) regime de gestação de substituição. A AR foi persistindo em soluções erradas no plano técnico, desequilibradas (quanto à necessária ponderação dos interesses em jogo) e com pouca viabilidade de chegarem a ter qualquer aplicação prática.

O Tribunal Constitucional, pelo menos considerando a jurisprudência de Abril de 2018, não aceita (e os Deputados sabem-no perfeitamente) um regime que não permita o arrependimento da gestante, posição que é totalmente acertada, não porque alguém defenda essa possibilidade como um fim em si mesmo, mas porque a tutela da dignidade da gestante é incompatível com uma solução legal que permita, sem mais, considerá-la retentora de uma criança (leia-se, potencial criminosa) só porque integra a ínfima percentagem de casos em que o seu estado psico-somático a compele a mudar radicalmente de posição. O arrependimento da gestante é odioso, raro, mas temos de aceitar que existe e, portanto, o sistema legal e judicial deve preparar-se para lhe dar o devido enquadramento, no quadro da economia dos interesses envolvidos.

Tentando corrigir a lei, o Bloco de Esquerda propôs um prazo curtíssimo (pouco mais de duas semanas) para a gestante se arrepender. Esta solução, que (além de tecnicamente errada) seria também reprovada pelo TC, acabou rejeitada pela AR, com os votos do PSD, CDS-PP e PCP.

A AR fez, assim, um original “veto de gaveta”: aprovou uma lei que o Presidente da República nunca poderia promulgar e relativamente à qual o TC, com enorme probabilidade, se vai pronunciar pela inconstitucionalidade.

Há outro caminho? Claro. Para que a gestação de substituição funcione, em Portugal, num quadro de conforto constitucional, é necessário consagrar um regime, diria, de suave arrependimento, protegendo-se a dignidade da gestante de substituição e do casal beneficiário (este também pode arrepender-se, não ter já condições objectivas para receber a criança ou até nem existir no dia em que o parto ocorre).

Os Deputados deveriam ter consagrado um prazo, entre as 6 semanas e alguns meses após o parto, que permitisse uma intervenção judicial ou administrativa que enquadrasse (e até procurasse afastar) uma eventual pretensão de arrependimento da gestante, ou uma qualquer vicissitude ligada ao casal beneficiário que o impeça de receber a criança. Um regime desta natureza traria para Portugal as melhores e mais experimentadas soluções técnicas para um problema que muito tem ocupado, por esse Mundo, cientistas, médicos e juristas.

Ninguém quer o arrependimento da gestante de substituição, ainda que o seu estado psicológico lhe imponha essa vontade; ninguém espera que o casal beneficiário tenho o infortúnio de não estar mais em condições de assumir os seus compromissos de parentalidade.

Acontecendo, porém, algum desses infortúnios, o Direito tem a obrigação de proteger o destino de uma criança entretanto gerada, e que, uma coisa é certa, não pode ser alvo de uma decisão Salomónica!

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