Uma Bóia para que as férias no Algarve não vão ao fundo

Em Lagoa, um festival singular propõe-se reflectir sobre a condição veraneante, através de uma multiplicidade de práticas artísticas contemporâneas e de performers, de Vânia Rovisco aos Von Calhau. Até domingo, o Paragem põe em campo a sua edição zero, iniciativa da Associação Cultural Bóia.

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Um dos trabalhos de Rubene Palma Ramos & Jorge das Neves em exposição

São um período de descanso, de prazer e de respiração, da mesma maneira que podem transformar-se em bolsas de tensão ou até de frustração, pelas altas expectativas que convocam, e por nem sempre diferirem dos tão exasperantes rituais diários que se querem ver pelas costas. Falamos, claro, das férias. É esse o conceito – (De) Férias no Algarve – por trás do festival Paragem, que acontece pela primeira vez, em Lagoa, desta quinta-feira até domingo.

A iniciativa é da Associação Cultural Bóia (“a salvar vidas desde 2018”, dizem eles), uma ideia desenvolvida por Nélson Guerreiro, ligado desde sempre à escrita e às artes performativas, e pela artista Filipa Brito. Foram eles que traçaram uma programação multidisciplinar, com projectos nas áreas da performance, do teatro, da dança, da música ou das artes visuais, numa lógica onde está presente também o desejo de envolver as comunidades permanentes e temporárias do território. “Ao nível das práticas e do pensamento artístico contemporâneo, não existia por aqui nada de muito consistente e a Câmara acolheu a nossa proposta. A associação surge com o intuito de criar acontecimentos em que a arte contemporânea, o pensamento e elementos do património local se possam cruzar”, conta Guerreiro.

Inicialmente, a realização de um evento em pleno Agosto algarvio levantou-lhes dúvidas. Depois, viram-no como um desafio estimulante. “Por um lado, existe toda essa reflexão, ainda para mais no Algarve, do que significa isso de estar em férias. Por que é que é um destino tão procurado? As praias, as festas de pôr-do-sol ou a gastronomia. Mas nem todas as pessoas vivem essa dimensão estival da mesma forma. Há muitas nuances. E depois há todo um reverso desse lado mais paradisíaco, que pode ter a ver com a dificuldade em cumprir-se um desejo que se fantasiou. Como é que isso se pode articular com a vertente artística, através de diferentes práticas, foi algo que nos pareceu sugestivo.”

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A performance Esfericamente em múltiplas direcções, de Lara Morais

Na escolha dos artistas, diz Filipa Brito, para além da validade dos projectos apresentados, valorizou-se também o “lado mais humano” da ligação com as pessoas. “São agentes de quem gostamos de estar por perto e com quem partilhamos uma certa ideia de comunidade. É como se fossemos todos cúmplices uns dos outros, até nos princípios de vida.” Houve selecções intuitivas, tendo até em atenção o tema que o festival pretendia reflectir, e o facto de a dupla de programadores já ter visto algumas propostas anteriormente: são os casos da performance Esfericamente em múltiplas direcções, de Lara Morais, ou da instalação-performance Êxodo, trabalho de Lara Portela que parte de uma certa ideia de nomadismo, tendo sido desenvolvido depois de uma série de mudanças de casa. Mas existem outros projectos que só agora terão a sua efectivação, tendo sido pensados propositadamente para a edição zero do Paragem.

Por exemplo, os trabalhos da coreógrafa Vânia Rovisco, que tem trabalhado objectos artísticos que misturam dança, instalação, artes visuais e paisagens sonoras, ou dos também transdisciplinares Von Calhau, aqui numa colaboração com o artista americano Barry Weisblat – que também se apresentará a solo. “Em ambos os casos estamos a falar de residências artísticas no Algarve de que irão resultar apresentações”, diz Guerreiro, que adianta que todas as apresentações vão ocorrer em espaços não convencionais como praias,, adegas, capelas ou suites.

A Adega Cooperativa de Lagoa receberá uma exposição colectiva de artes visuais, com pinturas de Audun Alvestad e João Ferro Martins, escultura de Antónia Labaredas e instalações por António MV, Ana Rita António ou a dupla Rubene Palma Ramos & Jorge das Neves. Os últimos apropriam-se de “coisas deixadas para trás, resquícios de vidas dispersas, fantasmas de pessoas que, ausentes, marcam o presente na ausência”, manipulando objectos e espaços habitados. Na suite do hotel Carvoeiro Plaza haverá uma peça de teatro íntimo com a actriz Isadora Alves; do Largo da Praia, também no Carvoeiro, partirá um Comboio-Mistério que vai levar os visitantes por paragens inesperadas (campos de ténis ou eiras) onde acontecerão algumas das performances.

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Êxodo, de Lara Portela

Uma delas é Natureza falsa, da coreógrafa Ana Monteiro, portuguesa com residência em Buenos Aires que vem procurando desafiar noções fixas de dança e coreografia, com propostas que consistem em práticas especulativas, de caminhadas a encontros lúdicos em torno das construções e das divisões entre natureza e cultura. “A ideia é também aproveitar os circuitos operacionais do turismo local, mas olhar para o espaço de outra forma”, explica Guerreiro. “Algo que possa dar uma visão de um outro Algarve, para lá do óbvio, onde a carga do tempo está presente.”

Um outro acontecimento singular acontecerá ao final da tarde de sábado, encontro marcado nas traseiras da Igreja do Carvoeiro. Trata-se de Comunidade Imaginada, um ritual de reencarnação que contará com performers, a banda filarmónica de Silves e habitantes locais, “que terão de vir devidamente engalanados”, ri-se Guerreiro, “porque a ideia é precisamente criar um contraste” com os hábitos e as vestes de descontracção e relaxamento das férias.

Resta saber como irão ser recebidas as diversas acções previstas neste ano zero. “Nunca se sabe”, admite Guerreiro, mostrando-se optimista quanto ao futuro: “Como diz o nosso lema, tudo faremos para propiciar boas práticas artísticas contemporâneas em época balnear.”

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