Um “museu” em Santa Comba

Seja em Santa Comba ou em qualquer outro ponto do território, é urgente uma descolonização mental do Estado Novo

Finalmente, tem-se feito uma discussão importante na sociedade portuguesa. Ainda tímida, é certo, mas é já um início de conversa. Portugal foi um dos países que transitou de um regime autoritário e ditatorial para uma democracia praticamente sem derramamento de sangue. Ora, associada ao 25 de Abril está a descolonização, cujo debate é eternamente adiado, se bem que a distância histórica só a partir de cerca de meio século sobre o evento permita uma análise mais objectiva, dentro da objectividade subjectiva que sempre é a História.

Edificar um “museu a Salazar”, assim dito, parece estapafúrdio, porquanto soa a saudosismo de um passado que não conheci, por ter nascido em 1977, mas que estudei o suficiente para saber que não desejo para o meu país ou qualquer outro. Santa Comba Dão não deseja ficar no mapa histórico pátrio por se transformar num local de romagem de grupos radicais de direita. Se bem interpreto as palavras dos responsáveis, a ideia, por certo, nunca foi essa. Fala-se, agora, de um “centro interpretativo do Estado Novo”.

Por regra, o puro nominalismo arrepia-me e convivo muito bem com a denominação “Museu das Descobertas”. Tudo mais parece-me artificial e motivo apenas para discussões estéreis de quem julga que as palavras têm o toque de Midas. Enganam-se: são as acções que modificam mentalidades. Ora, nesta ordem de ideias, é importante reflectir sobre o Estado Novo – as suas causas, princípios orientadores, consequências para Portugal e integração nos movimentos de direita radical europeia do passado século, desde o fascismo ao nazismo, mas sempre em diálogo com o lado de lá da Cortina, com o bloco soviético e “Estados” gravitacionais.

Uma reflexão que se pretende o mais isenta possível, que não deixe de mostrar que algumas vantagens económicas – limitadas aos suspeitos do costume, note-se –, a “ordem” e o “respeito” de nada valem quando obtidos sem liberdade. É como jogar uma partida viciada: se não se admite a pluralidade, como se pode dizer que a suposta “ordem” resultava de uma assunção livre do povo por um regime que tudo fazia para que a pessoa comum fosse iletrada e deixasse os assuntos de Estado entregues a um iluminado sebastiânico?

As peripécias da Primeira República e o surgimento de figuras musculadas, como é tão típico na História – nenhum povo gosta de viver numa quase anarquia, excepção feita, talvez, para os italianos, mas esses têm um calo de séculos e a força da economia (registada e não registada) vai aguentando um país que se transforma, cada vez mais, com muita pena, numa anedota.

Mostrar através de qualquer técnica museológica o que foram quase cinquenta anos de suposto corporativismo, em que consistiu, que técnicas empregou, num espaço interactivo e que abra espaço para a discussão séria e sem tabus, é uma mais-valia para a democracia. Bem tem o Presidente da República falado nos “movimentos inorgânicos” que, aliás, surgem da análise sociológica da dita “modernidade tardia” e deste desencantado tempo capitalista-pessimista-depressivo. Aí seria um bom lugar para líderes de partidos de ideologia fascista ou de extrema direita e movimentos mais ou menos “inorgânicos” se poderem também expressar, sempre em contraditório.

Não se trata de acordar a besta. Ela está aí e pensar que Portugal viverá sempre sem partidos de direita radical é uma utopia (veja-se o exemplo de André Ventura). Porventura, as nossas condições sociológicas e, sobretudo, económico-financeiras, a que não é alheia a sabedoria de um povo a caminho dos 900 anos, parirão entes “mais simpáticos”, mas a besta não deixa de matar pelo simples facto de se mascarar de princesa.

Como em outros assuntos (tantos, demasiados), que se não faça com uma discussão como esta o que é usual: a política da avestruz. Seja em Santa Comba ou em qualquer outro ponto do território, é urgente uma descolonização mental do Estado Novo, esperando eu que, tudo estudado e ponderado, se conclua pela sua absoluta inadmissibilidade, pelo desejo intrépido de se não voltar a esses tempos e de, assim, combatermos, também, os ditos “movimentos inorgânicos” que sempre atormentaram e toldam a razão (a tal que, quando sonha, produz monstros – Goya).

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