E se fosse consigo?

O que se passa dentro de cada um não deve ser julgado levianamente, muito menos em tweets de 140 caracteres ou em posts que vão ficar na internet a envelhecer mal até ao fim dos tempos.

Nasci na madrugada de 31 de Dezembro de 1975: parto natural sem epidural (havia lá isso em Mirandela, naquele tempo!), 3,750kg de gente, 51cm. Menina, cinco dedos em cada mão e pé, pernas do mesmo tamanho, mãos e pés grandes, pele enrugada... uma espécie de estereótipo. Sem história.

Continuei a crescer no conforto de fazer parte da maioria sempre muito perto do que a sociedade fantasia sobre ser menina. Vesti todas as cores, sem grande insistência no rosa, mas o preto cedo se tornou a minha primeira opção para a roupa. Gosto mais de calças do que de saias, mas prefiro vestidos e saltos altos.

Fui uma adolescente como as outras, com os maus humores próprios da idade, os interesses habituais (com especial enfoque na leitura), as preocupações dos pais, os amigos e a rebeldia. Tirei o curso, comecei a trabalhar, fui mãe, fiz tudo o que supostamente se espera de uma mulher. Ser igual ao que a sociedade acredita ser normal não evitou azares e momentos de sofrimento, mas ajudou a ser poupada a um tipo de rejeição que tem pouco de racional e que vai muito além daquela que todas as pessoas sentem num ou noutro momento da sua vida.

Posto isto, é óbvio que não consigo imaginar o que é a vida de uma criança, jovem ou adulto que não encaixa neste “desenho” de normalidade, que nasceu menina e se vê e sente menino, por exemplo, lutando contra si próprio quase desde o momento zero. Não quero esmiuçar o polémico “despacho das casas de banho”, que foi tão mal-entendido como recebido, mas quero dizer que foi por causa dele que esta semana li desabafos arrepiantes de pais e mães que lidam com uma realidade própria de quem não faz parte da maioria.

Recupero o relato de uma mãe, em reacção sentida a um artigo de opinião de Laurinda Alves publicado no Observador, que perguntava: “Sabe o que é ir ver as notas da sua filha e a pauta ter o nome em branco, como se não existisse, porque era, até agora, a única forma legal de não usar o nome que já não usávamos? Sabe o que é ter uma filha em pânico por não saber se pode ir a uma casa de banho, por ter de se despir em frente a outros? Sabe o que é tê-la no colo a chorar e a perguntar porque é que nasceu assim e angustiada por viver a solidão mais profunda?”.

Poucos sabem (eu não sei), assim como poucos param para pensar no que a mãe desabafa a seguir: “Não sabe que os punimos por isso, que os repreendemos e que os rejeitamos. Porque nós, pais, tal como a Laurinda Alves, não sabíamos o que era. Para nós, tal como para si, o nosso querido filho era afinal o quê? Um deficiente? Uma aberração?”.

Há quem passe anos a fazer terapia por razões que outros não compreendem nem valorizam. Há quem decida pôr fim à própria vida por ser demasiado magro ou demasiado gordo ou porque o seu aspecto não corresponde aos padrões sociais de beleza. Há quem faça cortes nos braços ou pernas porque perdeu alguém muito próximo. O que se passa dentro de cada um não deve ser julgado levianamente, muito menos em tweets de 140 caracteres ou em posts que vão ficar na internet a envelhecer mal até ao fim dos tempos. A opinião é livre, mas temos mesmo o direito de só proteger o que cabe dentro do estereótipo?

Vale a pena lembrar o lema do programa de televisão: “E se fosse consigo?”.

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