Berghof, o lugar idílico onde Hitler era humanizado

A casa, simbolizando o lado privado do líder alemão, apareceu na imprensa internacional. Foi essencial na propaganda para Hitler se mostrar como alguém em quem se podia confiar.

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Adolf Hitler e Eva Braun em Berghof DR

A imagem de Adolf Hitler é associada sobretudo a grande paradas militares, discursos a multidões entusiasmadas e adestradas, grandes e imponentes espaços. Mas há outra imagem tão desenhada pela propaganda como essa: a do ditador nazi na sua casa de férias numa montanha bávara, onde o tom de verde quase faz sentir a frescura do ar limpo, a há proximidade com a natureza e uma pequena comunidade – a vida dos prazeres simples, moralmente sã, que esperava a nação depois dos sacrifícios da guerra.

A casa Wachenfeld, mais tarde chamada Berghof, foi o local mais associado ao lado privado de Hitler: mostrava o líder alemão a ler, a brincar com os seus cães, a dar passeios pelos bosques ou a ir falar com as multidões que queriam ter um contacto mais próximo com o seu líder.

Hitler comprou a casa do sonho alemão, um modesto chalet de madeira nas montanhas da Baviera, em 1932, com dinheiro que recebeu das vendas do seu manifesto político, Mein Kampf, que escrevera na prisão (onde cumpriu pena pela tentativa de golpe em Munique em 1923). 

Mas depois de uma renovação dirigida pela arquitecta de interiores Gerdy Troost e o até então desconhecido arquitecto bávaro Alois Degano, sob instruções do próprio Hitler, foi transformada numa casa elegante mas modesta, decorada com um gosto irrepreensível. No seu livro Hitler at Home (não traduzido em Portugal), a historiadora Despina Stratigakos conta como esta casa foi essencial na estratégia para ultrapassar a imagem da figura exagerada do início da carreira política de Hitler, e apresentá-lo como alguém poderoso, culto, em quem se podia confiar.

Tudo foi pensado para propaganda interna e também externa: a casa apareceu em revistas de decoração de todo o mundo (com fotos de Hitler a passear ou brincar com cães), a revista do New York Times, por exemplo, publicou um artigo em tom neutro sobre “o domínio pessoal e privado do Führer” onde discussões sobre a guerra eram intercaladas com “passeios com os seus três pastores alemães por majestosos trilhos de montanha”, relata Stratigakos.

Foi no Berghof que Hitler recebeu reis e príncipes, primeiros-ministros, líderes religiosos, embaixadores. Provocou admiração: o primeiro-ministro britânico, David Lloyd George, visitou o local em 1936 e ficou tão impressionado com a janela que quis fazer uma igual na sua casa de campo. Winston Churchill disse mais tarde que “ninguém foi tão enganado por Hitler” como Lloyd George.

Os habitantes locais foram sendo afastados a troco de compensações ou viram as casas danificadas para os obrigar a sair para dar lugar a outros importantes líderes nazis, como Herman Göring ou Martin Bormann, e a maior segurança para todos. Quem se opôs foi ameaçado e, num caso, a ameaça foi concretizada: um fotógrafo que se atreveu a pedir directamente a Hitler para manter a sua loja passou, por isso, dois anos no campo de concentração de Dachau, conta a historiadora.

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A famosa grande janela da sala de Berghof Hugo Jaeger/Timepix/The LIFE Picture Collection via Getty Images

Berghof já não existe – a casa foi atingida por um bombardeamento britânico a 25 de Abril de 1945 e em 1952 o chalet foi totalmente destruído e enterrado, com árvores plantadas no local, para evitar peregrinações de neonazis.

Mas não resultou. A abordagem de nem gerir o local “de um modo historicamente responsável” nem o destruir totalmente levou a que se transformasse mesmo num local de adoração a Hitler, escreveu Timothy Ryback num artigo na revista americana The Atlantic, em 2005, resumindo o problema apontado por muitos outros críticos.

As árvores estão marcadas com símbolos nazis (suásticas, ou as letras SS), e os “peregrinos de Hitler” reúnem-se por vezes à noite no local remoto, fazendo vigílias com velas. São alemães, mas não só: antes vinham dos EUA, França, Bélgica e Holanda; nos últimos dois anos têm aparecido autocarros da Hungria e da República Checa, disse ao diário britânico The Guardian Mathias Irlinger, que desde 2004 trabalha num centro de documentação sobre o local inaugurado em 1999.

O centro está a ser aumentado precisamente com a ideia de ocupar o espaço para que os neonazis não o possam fazer, resume Irlinger, notando, no entanto, outra tendência preocupante: se antes conseguiam identificar os visitantes neonazis pelas suas cabeças rapadas, agora alguns dos que chegam para as visitas guiadas não parecem neonazis, mas aparecem para provocar: “Sabem como levantar questões, ou provocar discussões, que demoram mais tempo a contrariar” pelos funcionários (apesar de estes terem formação para o fazer).

A ideia central do renovado museu é contrapor as imagens de Hitler a beber chá, brincar com a sua cadela, a ouvir ópera, com as decisões que tomou entre a pose para as fotos – matar milhões de pessoas. Foi ali que Hitler planeou a invasão da Polónia, disse o próprio; a operação Barbarossa, a guerra total à União Soviética, com ordens para “exterminar os comissários bolcheviques”, tem o nome do rei de barba ruiva cujo espírito, segundo uma lenda, andaria perto.

“Essa ligação entre este lugar idílico e crimes em massa… ainda hoje é um problema para mim conciliar as duas”, disse o responsável.

Irlinger considera que no seu esforço de confronto com o passado os alemães ainda só lidaram com uma pequena parte. “Locais como este, onde foram feitas estas fotografias simpáticas de Hitler, foram ignorados.” Chegou agora a altura, defende, de os assinalar, “de lembrar e levar a sério o aviso”.

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