A BBC, a avó e a escultura de Giacometti que um gato partiu e mesmo assim foi vendida por meio milhão

Uma avó inglesa levou a um programa de televisão da BBC uma peça que herdara e que acrediatava ser de Alberto Giacometti, um dos maiores escultores do século XX. Depois de um acidente doméstico, o seu próprio avô colara-a e pintara, fazendo com que a assinatura do artista suíço desparecesse. Depois de devidamente restaurada, foi vendida por mais de 500 mil euros.

Philip Mould, Fiona Bruce, Claire Clark-Hall e a neta, Henrietta Plunkett, com a escultura, numa imagem do programa da BBC
Fotogaleria
Philip Mould, Fiona Bruce, Claire Clark-Hall e a neta, Henrietta Plunkett, com a escultura, numa imagem do programa da BBC BBC Studios
A escultura de Giacometti que este quase 100 anos nas mãos de uma família inglesa
Fotogaleria
A escultura de Giacometti que este quase 100 anos nas mãos de uma família inglesa BBC Studios

O programa existe há oito anos, participando da tradicional relação que a televisão pública britânica mantém com o mundo da arte e dos antiquários há já décadas. Fake or Fortune? estreou em 2011 e dedica-se a examinar a proveniência e autenticidade de obras de arte. No Outono passado, a equipa do programa liderada pelos co-apresentadores Philip Mould, negociante e historiador de arte, e Fiona Bruce, jornalista, andava às voltas com a autoria de uma pequena escultura abstracta — uma espécie de cubo em gesso com duas concavidades — cujo potencial reconheceu de imediato.

A sua dona, a inglesa Claire Clark-Hall, e a filha, Henrietta Plunkett, tinham decidido submetê-la à apreciação dos especialistas deste programa da BBC porque acrediatavam tratar-se de uma peça de Alberto Giacometti (1901-1966), o suíço que é um dos mais importantes escultores do século XX.

Mould e Bruce começaram, então, a investigar-lhe a autoria, mas, não estando a escultura assinada e não havendo qualquer outra prova capaz de estabelecer a sua proveniência, viram-se obrigados a terminar a temporada do programa sem que a ligação ao artista que associamos de imediato a figuras humanas esguias e elegantes, de pé ou a andar, fosse confirmada. O comité de especialistas da Fundação Giacometti responsável por avaliar as muitas peças que lhe são atribuídas num mercado inundado por falsificações chegou mesmo a assumir que era incapaz de lhe conferir o selo de autenticidade com a informação de que dispunha.

A temporada de Fake or Fortune? terminou, assim, sem que Claire Clark-Hall ficasse a saber se a escultura que herdara da avó era, ou não, obra de Giacometti, mas os esforços para identificar o seu autor não se ficaram por ali.

Mais tarde a peça foi submetida a exames de raio-x para avaliar os seus danos estruturais e objecto de uma limpeza rigorosa — técnicos de conservação removeram marcas de um anterior restauro doméstico e camadas de sujidade acumulada durante décadas —, ficando a descoberto uma assinatura a lápis (Alberto Giacometti 1928) e outros elementos que permitiram chegar à conclusão, sem reservas, de que se trata de um Giacometti genuíno. A escultura acabou, depois, por ser vendida por mais de 500 mil libras (552 mil euros), noticia a imprensa britânica.

A venda desta Tête qui regardeo artista fez várias, havendo exemplares em gesso ou bronze na Fundação Giacometti, em Paris, e em museus como o Stedelijk de Amesterdão e o de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque — foi mediada pela prestigiada leiloeira Christie’s e aconteceu em Fevereiro, mas foi mantida em segredo para que a actual temporada de Fake or Fortune?, que começou na sexta-feira à noite no principal canal da BBC, pudesse dar a novidade aos seus espectadores, escreve o diário The Telegraph.

O último episódio da temporada anterior, em que se traçava o percurso — o possível à data —desta escultura em gesso foi retransmitido com um novo final, detalha a Antiques Trade Gazette, uma publicação semanal especializada no mercado de antiguidades.

A avó, o gato e… o avô

Quando fez esta escultura e as outras semelhantes — estas peças podiam ser replicadas com facilidade, daí a abundância de falsos no mercado e a dificuldade em distinguir o que é original do que não é — Alberto Giacometti estava já a viver em Paris, para onde se tinha mudado no começo da década de 1920 para estudar escultura com Antoine Bourdelle, colaborador de Auguste Rodin, e era presença habitual nos cafés em que artistas como Pablo Picasso, Joan Miró, Max Ernst e Balthus se reuniam em animadas tertúlias. Foi nesse período e na década de 1930 que o escultor suíço se aventurou no universo do cubismo e do surrealismo.

Fiona Garfitt, a avó de Claire Clark-Hall, esteve na mesma altura na capital francesa a estudar arte e chegou a servir de modelo ao pintor André Derain (1880-1954) e, do seu círculo de amigos fazia parte a amante de Giacometti, o que lhe permitiu relacionar-se, também, com o escultor suíço, a quem terá comprado a escultura que a neta herdou e vendeu há cerca de meio ano.

Garfitt casou com Denis Clarke-Hall, um arquitecto, em 1936 e manteve a escultura em sua casa e intacta até que, nos anos 1960, o gato da família a derrubou, partindo-a em pedaços. Esforçando-se por lhe devolver a sua forma original, o diligente avô de Claire Clark-Hall uniu os fragmentos com estuque e pintou-a para que não se notassem as marcas que esta colagem deixara. E foi neste processo que a assinatura do artista suíço se perdeu.

O facto de a sua obra ser replicada com alguma facilidade torna a autentificação de um Giacometti um pesadelo. É por isso que, explicou Philip Mould à Antiques Trade Gazette, os exames de imagem à peça o tranquilizaram. A máquina de raio-x de alta precisão que usaram para o fazer, do Real Colégio de Medicina Veterinária, permitiu-lhes aceder a “reparações escondidas” que, supõem os especialistas, terão sido feitas ainda no atelier de Giacometti: “Um falsário dificilmente se daria ao trabalho de reproduzir [estas marcas internas]”, acrescentou o historiador de arte e apresentador.

Giacometti e o surrealismo

De acordo com as referências que a ela faz o material disponível no site da fundação parisiense destinada a preservar e a divulgar o património e a memória do artista suíço Tête qui regarde resulta, precisamente, das experiências surrealistas de Alberto Giacometti.

O artista juntou-se ao movimento liderado por André Breton em 1931, tornando-se um dos seus raros escultores, e foi expulso quatro anos mais tarde, embora “os métodos de trabalho surrealistas continuassem a ter um papel importante no seu processo criativo”, pode ler-se na página oficial da Fundação Giacometti, em referência às suas “assemblages” e ao “tratamento mágico” que tantas vezes faz da figura, humana ou não.

As obras de Alberto Giacometti ultrapassam por hábito as expectativas de venda nos grandes leilões internacionais em que aparecem e nos últimos anos têm vindo a atingir cifras espantosas. É do artista suíço, aliás, o recorde para uma escultura vendida em leilão: L'homme au doigt (1947) — feita em bronze e com quase 180 centímetros, representa um homem a apontar e faz parte de uma série de seis, sendo a única pintada por este escultor radicado em Paris — foi arrematada em 2015 na Christie's em Nova Iorque por 141 milhões de dólares (127 milhões de euros ao câmbio actual). Um recorde em que Giacometti bateu… Giacometti — o anterior também era seu pela venda de L'homme qui marche I, em 2010, por 104 milhões de dólares (93,7 milhões de euros).

Sugerir correcção
Comentar