Até os céus ficaram de luto

A resposta ao sobressalto ecológico no Brasil tem de correr de mão dada com a resposta ao sobressalto democrático. Só juntando as lutas se conseguirá vencer a política de Bolsonaro

Foto
Reuters/Ueslei Marcelino

A noite chegou antes da hora marcada e o dia desapareceu quando o sol ainda deveria estar no horizonte. As cinzas dos incêndios da Amazónia tomaram os céus de São Paulo, a 2700 quilómetros de distância. Enlutados os céus, a urgência ecológica não nos deixa desistir.

Os pulmões do nosso planeta estão na floresta da Amazónia. Isso aprendemos desde pequenos, quando nos maravilhamos com as imagens da vida selvagem ou das plantas exóticas, e nos dizem que ali se produz mais de 20% do oxigénio do planeta. A casa de 10 milhões de espécies é parte fundamental no equilíbrio climático global e um gigantesco armazém de carbono. Protegermos a Amazónia, preservarmos a sua biodiversidade, é fundamental para salvarmos o planeta do caos climático e do aquecimento global.

As alterações climáticas também se fazem sentir na Amazónia onde as secas se tornaram mais frequentes e severas. Contudo, se a crise climática cria condições para o desastre, é a mão humana que ateia o fogo. E a cada ato incendiário ou a cada desflorestação ilegal, diminui a área de floresta húmida e aumenta a probabilidade de novos períodos de seca e suas consequências. Isto não é inevitável, mas absolutamente previsível.

Bolsonaro, o presidente brasileiro, nega quase na totalidade o anterior parágrafo. As suas ligações ao agronegócio são conhecidas e a escolha para sua ministra da agricultura da ex-deputada Tereza Cristina, líder da bancada ruralista e representante dos interesses desse setor económico, não deixa dúvidas para quaisquer equívocos. Por isso mesmo, Bolsonaro nega que estes incêndios representem qualquer catástrofe ambiental - para ele estamos na “estação da queimada” - e até acusa de incendiários os ativistas das Organizações Não Governamentais (ONG) que durante décadas têm defendido a Amazónia da voragem dos interesses económicos, insulto absolutamente gratuito e sem qualquer prova. Segue o livro de Trump: na época das fake news a verdade não interessa e a realidade deixou de significar “aquilo que é real”. Fez o mesmo negando o assassinato de líderes indígenas.

Mas, o modus operandi do capitalismo na Amazónia é conhecido. As queimadas são a forma corrente que o agronegócio tem para conquistar terra à floresta. Não por acaso, este setor sente um enorme à vontade no turno de Bolsonaro na presidência e até realizou recentemente o “Dia do Fogo”, iniciativa onde promoveram queimadas ilegais e criminosas em vários pontos da floresta da Amazónia. Aliás, os números não deixam margem para equívocos: desde janeiro foram contabilizados mais de 72 mil focos de incêndio no Brasil - um aumento de 82% em relação ao ano passado - sendo a região amazónica a mais afetada.

A brutal redução da mancha florestal no último ano levou já à suspensão do financiamento de vários projetos internacionais por parte de países como a Noruega ou a Alemanha e tem sido denunciada por muitos especialistas. Em causa ficam a redução das emissões de carbono e da desflorestação, vitais para combater as alterações climáticas e o aquecimento global.

A destruição da Amazónia tem várias épocas e vários culpados. E se nenhum deve ser inocentado só porque Bolsonaro é pior, é na época da emergência climática que a comunidade internacional não pode falhar na exigência de ação ao governo brasileiro e na cooperação necessária para salvar o que é imprescindível para todos nós.

Quando Alexandra Lucas Coelho entrevistou o poeta da Amazónia, Vicente Franz Cecim, ele resumiu bem a triste história da exploração da Amazónia: “Temos uma manga e cem periquitos comendo ela. Tem mil mangas em volta, mas eles comem todos a mesma, porque estraga muito cada um comer uma. É uma inteligência ecológica, uma intimidade com a natureza. Assim viveu a Amazónia  até chegarem os brancos”. Está nas nossas mãos mudar esta história.

A resposta ao sobressalto ecológico no Brasil tem de correr de mão dada com a resposta ao sobressalto democrático. Só juntando as lutas se conseguirá vencer a política de Bolsonaro e garantir um futuro para todos.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários