As gémeas da Amadora. Quem são os verdadeiros responsáveis?

É à comunidade que devemos exigir, em primeiro lugar, um olhar atento às nossas crianças. A proximidade confere-lhe o poder único de aceder às dinâmicas familiares, tantas vezes escondidas perante os demais.

O recente caso das gémeas de 10 anos de idade que viviam em condições deploráveis, não iam à escola e eram vítimas de várias formas de violência motivou a que se apontasse o dedo às Comissão de Proteção de Crianças e Jovens e aos tribunais. Serão eles os verdadeiros responsáveis?

Comecemos pela comunidade. As crianças vivem inseridas numa família nuclear, com outros familiares e uma rede de vizinhança. Salvo raras excepções, existem pessoas que residem perto, no mesmo prédio, na mesma rua ou no mesmo bairro. E esta rede informal é também feita das pessoas da mercearia, da padaria, do café, da igreja, do jardim, entre tantas outras que se cruzam e se conhecem, melhor ou pior.

É à comunidade que devemos exigir, em primeiro lugar, um olhar atento às nossas crianças. A proximidade confere-lhe o poder único de aceder às dinâmicas familiares, tantas vezes escondidas perante os demais. Exige-se uma comunidade informada e sensibilizada, consciente de que sinalizar uma possível situação de risco ou perigo não constitui uma intromissão na esfera privada das famílias. A violência é um assunto que diz respeito a todos nós, sem excepção, e a não denúncia torna-nos cúmplices.

Temos depois as chamadas entidades com competência de intervenção em matéria de infância e juventude. Os ateliers de tempos livres, os centros de saúde, as escolas, as polícias. Estruturas mais formais da comunidade a quem se pede, ou melhor, exige, que olhem com atenção para as crianças. Que sinais dão elas? O que contam? Que receios manifestam? Sabemos que, muitas vezes, as crianças emitem sinais subtis que nem todos conseguem identificar. Por isso se exige, também, formação específica a todos estes profissionais, capacidade de comunicação e de escuta e, acima de tudo, disponibilidade para exercer o seu papel. Que é o mesmo que dizer, não fazer de conta que não se vê ou não se sabe. Porque se tem medo da reacção dos pais. Porque se deseja manter a aparência de uma escola perfeita e sem problemas. Porque pode haver alguém que faça alguma coisa e assim eu não tenho chatices.

Só depois surgem as CPCJ, que têm como missão definir e executar medidas de promoção dos direitos e protecção das crianças em perigo. Sobre estas equipas multidisciplinares, normalmente as mais criticadas quando alguma coisa falha no sistema de protecção, exigem-se profissionais a tempo inteiro, com formação específica e supervisão técnica. Impõem-se ainda mais recursos, humanos e materiais, para permitir um real acompanhamento de proximidade às famílias.

Temos por fim os tribunais, assessorados por equipas técnicas e peritos. Aos tribunais também é fácil apontar o dedo, porque são lentos, ineficazes e carecem de formação específica.

Pois é, perante casos gritantes de desprotecção de crianças facilmente vamos à procura de bodes expiatórios. Lamentavelmente, esquecemo-nos de duas coisas muito importantes. Em primeiro lugar, todos nós, enquanto comunidade, somos parte integrante do sistema. Em segundo lugar, as CPCJ e os tribunais não actuam sozinhos, envolvidos que estão numa rede de interdependência com as demais entidades.

Trabalhar nesta área há mais de 20 anos permite-me perceber que temos ainda um caminho demasiado longo pela frente. Um caminho de informação, sensibilização e formação técnica que possibilite prevenir e intervir de forma realmente eficaz. Infelizmente, um caminho recheado de obstáculos, como o individualismo, os mitos e as crenças que legitimam a violência, a escassez de profissionais e a dificuldade de articulação interdisciplinar. Mas penso que o principal obstáculo pode estar dentro de cada um de nós - quando esticamos o dedo e acusamos os outros, incompetentes, de falharem.

Não teremos falhado todos nós, enquanto comunidade?

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