Quem responde pelas gémeas da Amadora?

No limiar da terceira década do século XXI, em Portugal ainda há crianças que a miséria e a indiferença privam de um dos seus direitos primordiais: aprender a ler e a escrever.

Missões, comissões, organismos públicos, privados ou sociais, misericórdias e departamentos do Estado, paróquias e juntas de freguesia, magistrados e polícias foram construindo ao longo das últimas décadas uma impressionante rede de protecção de menores em risco em Portugal. Ao mesmo tempo que, sob a égide do Estado ou da solidariedade social, essa rede se construía, todo país foi envolvido para garantir que a defesa das crianças em risco se tinha tornado uma causa do país moderno e justo a que tínhamos direito.

A situação das crianças é ainda terrível, mas só por cegueira se pode dizer que esse enorme esforço colectivo não produziu resultados. Produziu. Mas a terrível descoberta, esta semana, de duas meninas gémeas, de dez anos, que viveram até aos dez anos sem nunca terem ido à escola mostra também que nessa rede há buracos intoleráveis. Saber o que falhou é fundamental para que a causa da defesa das crianças não perca o fulgor que justamente acumulou.

Há muitas perguntas a precisar de resposta. As duas crianças foram pela primeira vez sinalizadas pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens há seis anos e custa aceitar que tenham podido viver desde então numa garagem sem água potável e sem direito a ir à escola. O Ministério Público tinha conhecimento de 2016 da sua situação e não se pode tolerar que o processo tenha acabado na rotina do atraso. Houve falhas graves nos organismos públicos. Precisam de ser apuradas e corrigidas.

Mas não se chegará onde é preciso se cairmos na tentação de culpar apenas a administração pública ou a Justiça. Porque a negligência, a irresponsabilidade ou a indiferença que estão na base da exclusão das duas meninas é também consequência do vazio das políticas de proximidade e da própria cidadania. O caso não se passou numa casa isolada de uma aldeia remota das montanhas: aconteceu na Amadora. É impossível que a situação das meninas não fosse do conhecimento dos vizinhos, que conviveram anos de silêncio cúmplice com a sua tragédia. E é inacreditável como esta miséria humana extrema nunca tenha sido percebida pela junta de freguesia e das suas antenas na comunidade.

Sinal preocupante da pobreza extrema que persiste, da desumanização decorrente da destruição dos laços comunitários nos grandes subúrbios e da insensibilidade que a cada passo se nota nos serviços públicos, o caso das duas meninas justifica um sobressalto cívico. No limiar da terceira década do século XXI, em Portugal ainda há crianças que a miséria e a indiferença privam de um dos seus direitos primordiais: aprender a ler e a escrever.

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