O segredo do Bloco Central para não recorrer à requisição civil

O único governo que juntou PS e PSD, liderado por Mário Soares entre 1983 e 85, foi um dos poucos que não precisou de utilizar a força para conter a agitação sindical da época, numa altura em que o FMI intervinha no país. Um instrumento do direito laboral entretanto extinto serviu de varinha mágica.

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Vítor Ramalho era o secretário de Estado do Trabalho do Bloco Central Rui Gaudencio

O Governo do Bloco Central, liderado por Mário Soares entre Junho de 1983 e Novembro de 1985, foi um dos únicos dois executivos que, desde o 25 de Abril, nunca recorreu à requisição civil. Como é que isso foi possível, numa altura em que Portugal sofreu a intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o país era agitado por manifestações e greves? Em boa medida, devido a um mecanismo de direito de trabalho entretanto extinto – as Portarias de Regulamentação do Trabalho (PRT) -, como explicou ao PÚBLICO o secretário de Estado do Trabalho da época, Vítor Ramalho.

As PRT eram um dos instrumentos de regulamentação colectiva que permitiam ao Governo definir as condições salariais de sectores de actividade caso não houvesse associações sindicais ou patronais em determinado sector e/ou se estivesse perante a impossibilidade de acordo entre patronato e sindicatos. E cedo o Governo do Bloco Central definiu-as como um instrumento privilegiado para manter a paz social numa época conturbada.

Mário Soares sabia quais os principais desafios que teria de enfrentar na altura. A crise económica era profunda, a ponto de obrigar a uma intervenção do FMI, o que acarretaria inevitavelmente a desvalorização dos salários reais perante uma inflação de 23% ao ano, e muitas empresas não tinham sequer condições para pagar os ordenados. Tudo isso prometia um clima de conflitos laborais acesos.

Mesmo perante tal cenário, o Governo tinha como objectivo conseguir fazer um milagre de recuperação económica que lhe permitisse candidatar-se a membro do clube europeu, então chamado Comunidade Económica Europeia (CEE) daí a dois anos – o que veio a ser conseguido. Para tal, o próprio programa do governo apontava para uma diminuição dos salários reais na ordem dos 4%. Perante uma inflação de dois dígitos, isso implicava aumentos salariais que penalizariam sempre o poder de compra.

Vítor Ramalho, amigo de sempre de Mário Soares, lembra-se bem do dia em que chegou ao Ministério do Trabalho, então dirigido pelo social-democrata Amândio de Azevedo, para assumir o cargo de secretário de Estado. Nesse dia 1 de Fevereiro de 1984, “havia uma manifestação dos metalúrgicos que enchia completamente a Praça de Londres. Estavam a negociar com a associação patronal mas era um conflito insanável, porque os empregadores negavam qualquer actualização salarial e os trabalhadores queriam pelo menos o mesmo que a inflação à época, que era de 23%”, conta Vítor Ramalho ao PÚBLICO.

“Eu, que já tinha acertado com Mário Soares que iríamos usar as portarias de regulamentação de trabalho, aproveitei a oportunidade. Chamei a entidade patronal e disse-lhes que ia fazer uma actualização salarial de 15%. Eles saem dali furiosos e vão para o Ministério das Finanças. Liga-me o Ernâni Lopes [ministro das Finanças] a dizer – ó homem, você está doido? – e eu pedi-lhe para confiar em mim”.

Aumentos-surpresa de 18%

Era o princípio do fim de um processo que já começara antes, como conta ao PÚBLICO o então dirigente sindical António Maria Quintas. Já em Dezembro, na sequência da ruptura das negociações directas entre patrões e Intersindical, tinha sido constituída a comissão técnica exigida pela lei dos instrumentos da regulamentação colectiva com representantes das partes e do Ministério do Trabalho, que haveria depois de decidir a fixação dos aumentos salariais.

Com o tempo a seu favor, Vítor Ramalho chama, no dia seguinte, os sindicalistas e informa-os de que vai fazer uma PRT fixando os aumentos em 15%. Mas na verdade o que fez foi fixá-los em 18%, ainda dentro dos limites do programa de Governo. Diz que foi remédio santo: “Os patrões ficaram assustados com a possibilidade de o mecanismo se repetir e os sindicatos ficaram tão surpreendidos que não fizeram nada”. Assim diz Ramalho, mas ouçamos agora a versão do sindicalista.

“Havia três processos bloqueados: o nosso, o dos farmacêuticos e o dos gráficos”, conta António Quintas, que fazia parte da Federação de Sindicatos da Metalurgia, Metalomecânica e Minas de Portugal e esteve 30 anos à frente do departamento de contratação colectiva da Intersindical. “Na altura, decidimos que nenhum de nós ia pedir a PRT, ainda que fosse a PRT que a gente queria. Combinámos que íamos exigir uma solução ao Ministério e não os largávamos enquanto não houvesse solução, mas sem dizer que solução queríamos”.

Conseguiram, portanto, o que queriam os metalúrgicos e os farmacêuticos, mas não os gráficos: “Eles acabaram a pedir a PRT e não a tiveram, enquanto nós e os farmacêuticos tivemos sem a pedir. Nós até ironizamos, dizendo que eles se esqueceram de pedir por favor [ri-se]. Quem pede está aflito, quem está aflito não leva nada”.

Foi a primeira Portaria de Regulamentação do Trabalho feita pelo Governo do Bloco Central – e a última da história dos metalúrgicos. Vítor Ramalho lembra que, depois disso, o governo ainda recorreu pelo menos mais duas vezes àquele instrumento – para a TAP e para o comércio – e publicou mais 14 portarias de extensão para outros sectores. “Nunca mais tive problemas”, conta Ramalho.

A utilização daquele instrumento, na opinião de Quintas, não teve o papel de esvaziamento dos protestos sindicais que Vítor Ramalho vê nele. “A PRT foi já o desfecho de um processo longo de luta e a maioria esmagadora das empresas, as maiores, já tinham os problemas dos salários resolvidos internamente. Mas ajudou nas outras, com menos trabalhadores e menos capacidade negocial. Aliás, nessa altura, nós [a Intersindical] já praticamente só fazíamos concentrações, mas não greves. Precisamente porque os salários estavam resolvidos, a questão era a negociação do contrato colectivo de trabalho”.

A partir daí, reinou a contratação colectiva, em boa parte impulsionada pelo Conselho Permanente de Concertação Social, criado em Março desse mesmo ano por Ernâni Lopes. “O maior número de convenções colectivas de trabalho outorgadas em Portugal até então foi nesses anos de 1984 e 85”, afirma Vítor Ramalho. 

Ainda assim, António Quintas defende que “as PRT deveriam ser obrigatoriamente repostas, porque é a forma de resolver uma actualização mínima de salários, por mais modesta que seja”, pois serviam como última solução para quando não há resultados da negociação directa nem da conciliação e mediação. Na sua opinião, a sua extinção só serviu o patronato, que usa “a chantagem” dos aumentos salariais para retirar direitos aos trabalhadores.

Se o mecanismo da PRT ainda estivesse consagrado na lei, António Quintas considera que podia ter sido uma solução para a greve dos motoristas de mercadorias perigosas. Mas já não há…

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