Cracóvia e Salónica, Auschwitz e Vergina – a questão do sentido

A riqueza inabarcável da cultura europeia só se pode palpar, aquilatar e sentir quando saímos do circuito expectável das cidades incontornáveis.

1. Sentado numa esplanada de Salónica, diante do mar Egeu, junto à Avenida Aristóteles, desespero por um café. Escrevo estas linhas, pensando na enorme mudança que as companhias aéreas de baixo custo e o alojamento local trouxeram à cultura europeia, à identidade europeia. A Europa das capitais – e de mais algumas metrópoles e atracções turísticas – transformou-se rapidamente na Europa das cidades. Gente do Porto ou de Dubrovnik, que nunca se lembraria de ir a Gotemburgo ou a Lyon, passou a inscrever as cidades médias nos seus roteiros mais prováveis. A riqueza inabarcável da cultura europeia só se pode palpar, aquilatar e sentir quando saímos do circuito expectável das cidades incontornáveis. Esta transumância das cidades improváveis cria rede, cria espessura, fabrica identidade. Só nestas cidades é possível a “Europa dos cafés” de George Steiner. Só nestas cidades se pode compreender o mundo de ontem de Stefan Zweig.

2. Neste Agosto, voltei a Cracóvia e descobri Salónica. Cracóvia, hoje largamente tomada pelo frenesim turístico, que aqui e ali a mascara e disfarça, mostra a Polónia que nunca poderia ser apreciada em Varsóvia. Salónica, cheia de autenticidade, entalada entre os Balcãs e a Ásia Menor, apresenta a Grécia que Atenas dificilmente pode mostrar. Ambas exibem com orgulho uma história densa e rica, ambas se perfilam como “reservas” da identidade nacional. Cracóvia e Salónica são as segundas cidades da Polónia e da Grécia; não por acaso, fazem o contraponto às capitais e revelam por que razão a Europa não pode dispensar o lastro genético da cultura eslava e da cultura helénica, a semente espiritual do catolicismo, da ortodoxia e do judaísmo.

Cracóvia é belíssima, Salónica nem tanto. A história de ambas é também uma história de sofrimento e de sufocação: Cracóvia por largo tempo sob domínio austríaco, Salónica sob o jugo otomano. A narrativa da resistência e da resiliência é o músculo que dá força à identidade das duas cidades. Curiosamente, a população judaica teve um papel determinante na história de cada uma delas – e, em Salónica, em especial, a comunidade sefardita, provinda da expulsão da península ibérica –, embora ambas tenham sido largamente dizimadas pela ocupação nazi.

No simplismo da mensagem turística, as duas cidades projectam-se em torno das personalidades míticas. Salónica, capital da Macedónia, vive em volta de Alexandre o Grande e do seu legado para a expansão da civilização helénica. Cracóvia organiza-se em redor de João Paulo II e do seu combate ao nazismo (alemão) e em especial ao comunismo (russo). Cracóvia também reclama para João Paulo II o epíteto de “Grande”, que, até ao presente, só quatro papas ostentam. Os dois merecem decerto uma especial atenção, mas seria redutor e mesmo enganador julgar as cidades pelos méritos dos seus heróis.

3. Não se pode ir a Cracóvia sem andar umas poucas dezenas de quilómetros para visitar o campo de morte de Auschwitz-Birkenau. Não se pode ir a Salónica sem fazer outros tantos quilómetros para visitar Vergina (antiga Aigai), onde está o túmulo de Filipe II da Macedónia. Este complexo funerário, pertencente ao sítio arqueológico de Aigai (primeira capital da Macedónia), é uma das mais vibrantes descobertas culturais que fiz nos últimos anos. Em Aigai, podem ver-se as ruínas do palácio real (talvez o maior edifício do mundo grego) e do teatro em que foi assassinado Filipe II; mas nada se compara ao seu túmulo. Neste complexo, há quatro tumbas, das quais duas estão em perfeito estado de conservação (entre elas, a de Filipe II). Não só os “templos” de mármore estão em admiráveis condições como é possível ver todo o espólio que ali estava depositado. As armas, escudos e armaduras; as coroas, jóias e caixas funerárias em ouro; os serviços de cozinha e de jantar em prata; os utensílios de banho em bronze e ferro, nas cores originais; as pinturas das paredes com enorme grau de nitidez; as peças de cerâmica em estado admirável. E – note-se – um vasto conjunto de lápides funerárias de cidadãos comuns, com relevos e estatuária, onde figuram inscrições pungentes e arrepiantes.

4. O grande contraste deste verão, marcado pela morte, foi mesmo entre Auschwitz e Aigai. No campo de morte, tudo foi feito para a ocultar e esconder. À medida que as vítimas chegavam aos milhares, eram rapidamente desapossadas dos seus sinais identitários, devidamente numeradas e depois encaminhadas para as câmaras de gás. Em seguida, eram incineradas nos fornos crematórios, as suas cinzas atiradas ao rio e o remanescente dos ossos triturado e destruído. Ao invés do que imporia a norma nazi de organização rígida, não havia registo de nomes nem de identidades; não havia registo de nada. Nada se passara afinal. A morte em massa como morte de anónimos, desconhecidos, não pessoas. Nem um só vestígio. A morte era o ponto final, o fim, para lá do qual não havia nada nem podia sobrar nada.

Em Aigai, para todos e cada um, mas, muito ostensivamente, para a família real, havia a celebração da morte e a crença na eternidade. O funeral do pai de Alexandre o Grande foi o mais espectacular de que havia memória: pelos túmulos construídos, pelas riquezas ali deixadas, pelos relatos que existem da cerimónia de cremação e de depósito no túmulo. Como provam as lápides das pessoas comuns, para os macedónios, a morte não era uma banalidade. Mesmo pondo de parte a fé na eternidade, a morte era celebrada, assinalada, documentada. A morte era um momento de identidade, consubstanciava o reconhecimento do valor da pessoa. A morte era produtora de sentido; de sentido e de valor.

5. A Europa não pode hesitar entre o aniquilamento da pessoa, através da ocultação, ignorância e descaso da morte e a valorização da pessoa, por via do reconhecimento e do respeito da morte. Há que escolher entre Auschwitz e Aigai. A mais humana das condições é o culto dos mortos. Onde não há contemplação da morte, não há humanidade.     

SIM. Alexandre Soares dos Santos. A Fundação que deixou, a intervenção livre e independente e o seu sentido cívico mostram bem que não perdemos apenas um grande empresário.

SIM. António Barreto. O seu artigo “Ameaças”, no P2 de Domingo, retrata fielmente a cedência do PS ao populismo e ao politicamente correcto. Costa tomou o gosto ao controlo político e social.

    

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