A partícula da humanidade

No dia 19 de Agosto celebramos o dia mundial humanitário, com imenso respeito pelos voluntários, mas sem grandes motivos de orgulho internacional porque a defesa intransigente dos direitos humanos continua ainda ausente das agendas políticas de muitos Estados.

Embora os direitos humanos devam ser prevalecentes, o mundo apresenta-se hoje como um jardim devastado como diria Maria Gabriela Llansol.

O respeito pelos direitos humanos deveria marcar o século XXI, que emergiu com grandes avanços e deslumbre na tecnologia, robótica e na ciência com a descodificação completa do genoma humano, o microbioma humano ou a descoberta da “partícula de Deus“. 

Contudo, o aumento da inteligência humana e artificial não tem sido acompanhada de igual aumento da inteligência emocional e da necessária prevenção e gestão de conflitos armados. 

Atente-se à feroz guerra civil no Iémen onde o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) estima que mais de 15 milhões de pessoas, equivalente a mais de metade da população total do Iémen, estejam a sofrer fortes carências alimentares – 400 mil crianças sofrem de deficiências nutricionais. A destruição de infra-estruturas básicas, como hospitais, clínicas e estradas, também tornou o Iémen num campo fértil para epidemias como a cólera, que atinge mais de um milhão de pessoas. Sempre que se aborda este conflito, as Nações Unidas lembram que se trata da “pior crise humanitária” no planeta.

Poder-se ia mesmo afirmar que as luzes do conhecimento e de uma nova era têm conhecido uma persistente crise de sombras e trevas no que tange ao respeito por direitos humanos básicos universais.

Assistimos ainda à supressão de direitos, liberdades e garantias como o direito e liberdade de manifestação quando mais de mil manifestantes foram detidos na Rússia por contestarem graves irregularidades nas eleições locais ou quando se viola o direito das crianças não serem separadas dos pais, como ocorre com largas centenas de crianças imigrantes privadas da família nos Estados Unidos da América, em flagrante violação da Convenção dos Direitos da Criança.

Um país que aliás teima em não abolir a pena de morte e que ultimamente tem adoptado uma política migratória atentatória da dignidade humana numa obsessão doentia com a construção de muros que envergonham a comunidade internacional porque as perseguições  os conflitos, os abusos e as discriminações não se travam com muros nem com discursos de ódio que geram mais ódios com impactos difusos e dramáticos, mas sim com ajuda ao desenvolvimento  com adequadas prevenções de conflitos e agendas diplomáticas inteligentes.

Na verdade 70 milhões de refugiados e deslocados internos dão-nos a real dimensão da violação sistemática de Direitos Humanos existente.

Todos sabemos que enquanto existirem direitos violados e forem negados direitos essenciais não cessarão as fugas e os êxodos daqueles que buscam legitimamente proteção internacional e o “direito a ter direitos “ na acepção de Hannah Arendt. 

Dados divulgados no relatório anual do ACNUR Tendências Globais (Global Trends) revelam que quase 70,8 milhões de pessoas estão em situação de deslocação forçada em todo o mundo. Este número duplicou em 20 anos, é 2,3 milhões maior que o ano anterior e corresponde à população semelhante a de países como Tailândia e Turquia.

Em cada minuto que passa, 20 pessoas, em média, são forçadas a fugir por razão de conflito ou de perseguição.

De resto, o total de 70,8 milhões é ainda uma estimativa conservadora, especialmente porque o número reflete apenas parcialmente a crise na Venezuela. No total, cerca de quatro milhões de venezuelanos já saíram do país desde 2015, tornando essa uma das mais recentes e maiores crises de deslocação forçada no mundo. 

Neste contexto, também a Europa tem sido desafiada nos últimos anos por singulares circunstâncias históricas, de recrudescimento de conflitos e de novas guerras, a responder e a acudir ao extraordinário afluxo de refugiados que atravessam, clandestina e desesperadamente, o mar Mediterrâneo, em busca da sua sobrevivência e de um novo horizonte de vida.

Apenas 10% desta massa humana chega à Europa e por isso urge gerir melhor e com mais humanidade esta crise migratória persistente porque faz parte dos valores fundacionais da Europa de Robert Schuman o respeito pela DUDH e pela CEDH, que todos os países aliás subscreveram, mas que alguns líderes europeus parecem ignorar ao recusarem dar proteção àqueles que buscam a sua ajuda.

Entre janeiro e junho deste ano somente cerca de 24.645 refugiados chegaram à Europa (menos 33% do que em 2018 seguindo a OIM), contudo a imigração ainda persiste como a grande arma das forças de direita e populistas na Europa.

Vários navios humanitários navegam dias a fio nas águas da indiferença no Mediterrâneo (onde em 2018 perderam a vida 2200 pessoas), porque não há portos de esperança onde atracar e tal não é compaginável  com o respeito indeclinável pela vida humana que as Constituições de todos os países europeus sufragaram.

As vidas que se perdem e continuam a perder-se diariamente nem sequer têm sinos a dobrar por elas, apenas o silêncio de um cemitério líquido.

Na verdade, os valores universais não podem nunca submergir, nem ser invertidos com medidas salvinianas em nome de alegadas questões de segurança ou soberania que manifestamente não existem nesta crise migratória.

Merece assim nota positiva a posição dos Magistrados Europeus pela Democracia e as Liberdades (Medel) que se mostraram "seriamente preocupados” com o impacto nos salvamentos marítimos da política italiana de “portos fechados” que impede as embarcações das ONG de atracarem. A organização de juízes e magistrados europeus prevê que a lei italiana “coloque inevitavelmente um fim às operações de resgate implementadas no mediterrâneo pelas Organizações não Governamentais (ONG)”.

Positiva e solidária é também a posição de Portugal que se tem mostrado sempre disponível para receber refugiados.

Mais uma vez é fonte de orgulho nacional a postura do governo português ao disponibilizar-se para receber conjuntamente com mais cinco países (Alemanha, Espanha, França, Luxemburgo e Roménia) os 147 migrantes a bordo do navio humanitário “Open Arms”, fazendo jus à nossa matriz humanitária. 

Sublinhe-se que fomos também o primeiro país a adotar o Pacto Global de Migrações para que nos desafiou a ONU, com a aprovação do Plano Nacional para as Migrações neste mês de Agosto. O Plano Nacional é um “documento operacional” que envolve um total de 97 medidas, medidas essas que vão envolver quase todos os ministérios.

Igualmente a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) tem manifestado publicamente a defesa destes valores onde se inscreve o primado da proteção da vida humana, como ficou bem patente na Declaração de Luxemburgo aprovada na sua 28.º Sessão Anual em 8 de julho, por 300 parlamentares de 57 países europeus, onde estive presente com a restante delegação parlamentar Portuguesa.

Este ano as Nações Unidas dedicam o Dia Mundial Humanitário às mulheres voluntárias  uma evocação justa e necessária. 

Tal como tive oportunidade de referir no comunicado da OSCE emitido a propósito deste dia, há que celebrar o trabalho das mulheres como líderes humanitárias, como vozes da consciência e agentes de mudança.

Seja o assunto as migrações ou os direitos das crianças ou os conflitos com impactos em países da OSCE como a Ucrânia, as mulheres estão a trabalhar em todas as linhas da frente nas suas comunidades e muitas vezes colocando em risco as suas vidas para ajudar. Neste Dia Mundial da Humanidade urge saudar todos os voluntários, em particular as mulheres ao serviço das associações humanitárias que nos humanizam e elevam com a sua coragem. 

Podemos ter decifrado o genoma humano, mas falta-nos ainda encontrar a partícula de uma efetiva humanidade.

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