Nos labirintos da Educação

Na esteira de um incontestável património pedagógico, damos nota de um recente Manifesto, nascido no Colóquio da Educação Nova de 2016: “Quelles utopies pour aujourd’hui.

“A liberdade consiste em não eleger entre branco e preto, mas em fugir de toda a alternativa preestabelecida.”
Theodor W. Adorno

Um persistente paroxismo lavra nos discursos prescritivos. As locuções usualmente convocadas deixam antever uma espécie de decálogo que é uma sinédoque habilmente cerzida sobre proclives verdades – ou pretensas evidências.

Com frequência lemos – vemos ou ouvimos – exposições híbridas (ficções?, ensaios?, notícias?, opiniões? ou discursos científicos?) sobre o mundo social, que tendem a elidir (ou naturalizar?) fenómenos de consequências inusitadas, tais como os processos de gentrificação do espaço – de que as cidades são um paradigma preocupante –, mas os sinais da desigualdade social persistem –  a exploração do homem pelo homem; o esclavagismo; as massivas migrações intercontinentais; a emergência e célere proliferação de todo o tipo de autoritarismos (que inevitavelmente confluem tanto em guerras e nas contemporâneas colonizações quanto no ressurgir de manifestações sexistas, racistas, étnicas ou no exponenciar das posições populistas) –, que, no limite, recusam a pluralidade das Histórias, ensimesmando as sociedades num clima de crispação face a um outro. Alguns cientistas sociais, como Christophe Guilluy, denominam estes fenómenos como esgotamento da sociedade, associando a secessão entre as classes sociais com as sequelas no delapidar (senão o abandono) do bem comum e na progressiva decomposição da sociedade, como a crise da representação política, a atomização dos movimentos sociais e o desprezo pelo descontentamento das classes populares são sinais alarmantes.

É provavelmente um retrocesso civilizacional e que, na interpelação de Pierre Bourdieu, sublinha que a “violência mais visível” só pode ser diminuída se houver um “trabalho global de reduzir a violência que persiste em ser invisível (...), aquela que se exerce diariamente nas famílias, nas fábricas, nos escritórios, nas prisões, na polícia, e mesmo nos hospitais e nas escolas, e que é o produto da ‘violência inerte’ das estruturas económicas e sociais (...) que contribuem para as reproduzir”.

Um dos milhares de exemplos desta inércia pode-se encontrar no sempre polémico mas magistral documentário, Las Huerdes. Tierra sin pan, realizado, nos anos 1930, por Luis Buñuel. É uma ilustração perfeita de uma abordagem que concilia os diferentes planos cinematográficos (ou numa outra linguagem: as escalas micro e macro) como forma de espicaçar o espectador a reflectir, ou seja: motivando-o para a mudança. Num dos primeiros planos surge escrito: “Ensaio cinematográfico de geografia humana”, o que só por si questiona e confronta – deixando em suspenso a narrativa sobre a vivência da miséria e da exclusão num espaço – o espectador com a denúncia de uma realidade social na mais terrível desumanidade. O inóspito, o agreste, o grotesco, o inimaginável – o que, em suma, ultrapassa a ficção, mas que se inscreve na História e nas memórias dos marginalizados – é-nos exposto pelos planos abertos e médios, reservando-se para os close-ups as situações mais provocantes.

Escolhemos a sequência de planos relacionados com a Escola: uma rapariga, de uma janela, chama com uma sineta as crianças para a aula. A voz off informa-nos que a escola é de “construção recente” e que as crianças “descalças e esfarrapadas recebem a mesma educação primária como qualquer criança no mundo”. Continua: “Também aqui ensinam às crianças famélicas que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos rectos”. O travelling dá-nos o rosto fechado dos pupilos, sentados nas carteiras e os pés descalços baloiçam sem poisar no chão, e fixa, brevemente, uma gravura, pendurada numa parede, de uma menina vestida de princesa – “imagem chocante”, enfatiza a voz off, que prossegue a sua narrativa: “Tomamos ao acaso um livro de moral que está sobre a mesa, pedimos a um dos melhores alunos que escreva no quadro negro, a nosso pedido, uma das máximas que está no livro: ‘Respeitar os bens alheios’” –, continua: “A moral que aqui se ensina não difere daquela que se ensina no mundo civilizado (...).”

Foto
Cena do documentário de Luis Buñuel, "Las Huerdas. Tierras sin pan" (1933) DR

A educação enclausurada no formalismo (ou abstracção?) rasga-se no encontro com um mundo social, simbólico e fisicamente adverso.

Este documentário pode ser visionado, nos dias de hoje, como uma metáfora semiótica da historicidade das problemáticas que atravessam um universo educativo crescente e conflitualmente diglóssico – a tensão entre os processos de socialização e os processos de legitimação e dominação – que coloca em situação de afrontamento um conjunto de actores (educadores, professores, formadores, animadores, trabalhadores sociais, autarcas, políticos, intelectuais), homens e mulheres que demonstram, denodada e quotidianamente, que uma outra educação não é impossível. São os “pedagogos incrédulos” (como com reverência os denomina Philippe Meirieu) que mantêm uma fé inquebrantável num projecto colectivo, em formação, que coloca em causa as instituições petrificadas e as judiciosas sentenças dos tecnocratas e dos opinion makers, reprodutoras das taxionomias fundamentadas nos estereótipos de género, raça, classe social, política, cultura e nacionalidade; são, esses “pedagogos incrédulos”, o testemunho vivo de uma biografia – que historicamente se constrói e sociologicamente se consolida pela edificação de redes – capaz de se gravar numa micro política educativa de resistência face às modalidades impregnantes de dominação, via aprendizagens, com alunos concretos e em situações reais, em que na transmissão não se dissociem a autonomia, a solidariedade, o pensamento crítico e a construção do bem comum – “Todos capazes!”, é uma divisa com constância histórica, protagonizada individualmente e assumida colectivamente.

Na esteira de um incontestável património pedagógico, damos nota de um recente Manifesto, nascido no Colóquio da Educação Nova de 2016: “Quelles utopies pour aujourd’hui.

Éducation – Égalité – Émancipation. Nos Utopies pour aujourd’hui [1], é uma lição de militância pedagógica. Retenhamos, então, algumas das matrizes patentes no documento, que se estrutura em três partes:
1) Constatações;
2) Desconstruir o presente, inventar o futuro;
3) A ambição para a Escola.

Na primeira parte, procederam os redactores ao inventário das “injunções paradoxais” que geram fenómenos capazes (a várias escalas) de corroer a instituição escolar. Escrevem: “A Escola tornou-se uma instituição que paradoxalmente tem necessidade do insucesso para funcionar”, e, depois de qualificar o “círculo vicioso “ que se instalou, concluem: “É urgente do ponto de vista da democracia repensar o contrato escolar actual com o risco de desaparecer a escola pública.”

A segunda parte enfatiza que nas sociedades contemporâneas prevalecem as desigualdades sociais e simbólicas, sendo nevrálgico romper, quer com as “derivas do passado”, quer com “as certezas, as opiniões e as crenças que condicionam o futuro dos jovens”, o que se traduz na desmontagem de oito “concepções e argumentos que têm uma vida longa”, a reter:
1) é impossível evitar as exclusões;
2) a criança é um ser fraco;
3) a fraternidade é confundida com a compaixão;
4) a “igualdade de oportunidades” é uma “mentira social”, porque está baseada no axioma: “o sucesso de uns é o insucesso de outros”;
5) a concepção explicativa da transmissão dos saberes;
6) o “saber ser” é uma fórmula com novas roupagens da normalização;
7) a convicção que a competição é a fonte da motivação; 
8) a inevitabilidade de um sistema de selecção que tacitamente associa o controlo à avaliação.

E, perante este arrolamento, assevera-se: “É urgente agora, em face da tomada de consciência e das convicções, transformar as constatações e as nossas proposições em actos”.

Por último, a terceira parte – “A ambição para a Escola” – remete para a construção de uma “Escola de todos capazes”, ancorada na inteligência e na igualdade. Este Manifesto é o retomar do lastro do Congresso de Calais, de 1921, da Liga Internacional da Educação Nova, contribuindo para o forjar, nos tempos presentes, da identidade do movimento pedagógico.

Foto
Cena do filme de Joanna Grudzinska, "Révolution École", 1918-1939 (2016) DR

Para encerrar este périplo, recupero uma ideia fundamental de Pierre Bourdieu: “A primeira invenção que se deve fazer é organizacional, é preciso inventar os modos de organização que permitirão a invenção coletiva de uma visão nova e realista da economia e da sociedade.”

[1] O Manifesto pode ser lido e subscrito aqui.

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