A “geringonça” está a mudar o sindicalismo

Não receio a novidade. Medo tenho de mensagens premonitórias que prometem uma uma revolução civil “muito iminente” e que “pode não ser tão civilizada como o 25 de Abril de 1974”.

Voltei de férias no início da semana da greve. No percurso entre casa e trabalho fui assistindo à evolução da situação nos postos de combustível: primeiro atestados e a funcionarem como um Agosto normal em Lisboa; depois às moscas e com as reservas esgotadas; mais tarde novamente cheios mas com limites para quem queria abastecer. Nunca me faltou combustível e fui duas vezes à bomba sem filas. 

Não me preocupavam muito os efeitos imediatos da greve. Não seria a primeira vez que ia trabalhar de bicicleta e seguramente não seria a última que apanhava o comboio. Bem sei que nem toda a gente pode escolher entre estas duas alternativas, mas eram opções que me deixavam bem mais receosa dos efeitos da greve a longo prazo: falta de fruta, leite, frescos, produtos agrícolas em geral. Olhei sempre para a greve como um direito e sem muitos receios em relação às suas consequências.

Até que ontem li no Expresso a notícia de um email que chegou ao topo da hierarquia do Estado e no qual o motorista que há uns meses transportou o Presidente da República usava, de acordo com o relato do jornal que teve acesso à mensagem, expressões como “revolução civil” ou “26 dias foi quanto durou a greve no Chile, o Governo caiu”. Escrevia o remetente: “A população vai revoltar-se e (...) está muito iminente uma revolução civil que pode não ser tão civilizada como o 25 de Abril de 1974”. Ou ainda. “O primeiro dia da greve talvez não tenha grande impacto, mas ao avançar-se para uma paralisação prolongada com a atenção dos media, poderá ser o caos total”. 

Expostos assim - recorrendo a ideias como revolução menos civilizada, atenção dos media, queda do Governo, caos total -, os objectivos da greve são assustadores.

Não há paz social que mate o sindicalismo e ele está vivo, ao contrário do que muita gente disse ao longo destes quatro anos de “geringonça”. Mas é, parece-me, um sindicalismo diferente, mais desalinhado, com regras bem mais misteriosas.

Tivemos vários exemplos, desde 2015, da força sindical dos professores, dos enfermeiros, dos estivadores ou dos motoristas. Nestes quatro anos, os trabalhadores precários organizaram-se para se fazerem ouvir e nasceram novos sindicatos que dizem estar fartos da “luta mansinha" (como o Stop). A “geringonça” trouxe um modelo de governação inédito para a política, mas também teve efeitos no movimento sindical: parece ter amolecido o mais tradicional, que obedece a regras estabelecidas e cumpridas há dezenas de anos; e arrebitado o novo sindicalismo, o tal desalinhado (mais do que independente) que não quer ligar-se a nenhuma central sindical.

O Parlamento e os partidos aí representados tiveram de adaptar-se, nos últimos anos, a uma nova linguagem e uma fluidez diferente do processo político. O PSD e o CDS venceram nas urnas, mas não conseguiram viabilizar um programa de Governo. O país é gerido por uma coligação que não é bem uma coligação. O presidente da Assembleia da República não é oriundo do partido mais votado nas eleições. O Governo é minoritário mas tem garantias que o tornam absoluto para questões relacionadas com a sobrevivência da esquerda. Há acordos escritos que não são postos em causa, mesmo quando pequenos ou grandes desaguisados parecem pôr o futuro em causa. Tudo é diferente do que foi e isso obrigou a uma adaptação que não teve nada de imediata.

Acredito que o movimento sindical também esteja a atravessar um período de reinvenção em consequência deste novo modelo político que a “geringonça" nos trouxe. Está a introduzir regras inesperadas (o crowdfunding é só um exemplo) e a testar os limites. Não receio a novidade. Medo tenho de mensagens premonitórias que prometem uma uma revolução civil “muito iminente” e que "pode não ser tão civilizada como o 25 de Abril de 1974”. Viva Abril (civilizado)!

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