Pensar a formação dos médicos do século XXI

Tudo mudou na prática dos cuidados de saúde mas estamos ainda a discutir como se devem formar os médicos dos nossos dias.

Desde o século XII que a Europa forma médicos em escolas organizadas para o fazer. Mas já nessa altura se formavam profissionais com modelos distintos. Salerno, em Itália, baseava o ensino no modelo tutorial à volta de doentes que acorriam às termas procurando soluções para os seus males; desta forma, os alunos interagiam também com médicos vindos de regiões distantes que também ali convergiam. Montpellier, em França, organizou o primeiro modelo de curriculum que era seguido com leituras e pouco recurso à aprendizagem prática. Infelizmente foi este segundo modelo que vingou formando médicos teóricos que dificilmente incorporavam informação nova para a sua prática. Diz-se que um professor de Montpellier comentou a descoberta da fisiologia da circulação do sangue, por William Harvey, dizendo: “Pode ser que seja interessante mas não tem qualquer aplicação na prática.”

Decorridos mil anos, tudo mudou na prática dos cuidados de saúde mas estamos ainda a discutir como se devem formar os médicos dos nossos dias. A Educação Médica é um tema importante de pesquisa nas melhores escolas médicas do mundo.

Simplificando, podemos dizer que no início se privilegiava o saber dos compêndios, depois desenvolveu-se a observação dos sinais clínicos enriquecendo a semiologia médica, depois vieram os meios complementares de diagnóstico que enriqueceram mais a semiologia e, agora, veio a Inteligência Artificial (IA) que, por um lado, transporta e organiza ao minuto a informação teórica e, por outro, sugere diagnósticos e terapêuticas, simulando o pensamento médico. Acresce, ainda, a estes aspectos que os cuidados de saúde não são hoje, a maioria das vezes, resultantes de uma única relação de cuidado entre duas pessoas mas uma relação entre uma pessoa e uma equipa multidisciplinar que tem que ser coesa e não segmentada. Em geral, é necessário saber fazer emergir o gestor de caso mais apropriado, que é um processo idiossincrático complexo mas necessário.

Esta transformação tem sido extraordinariamente rápida e, por isso, ainda não modelou a maioria dos actuais curricula dos cursos de medicina, mas anda na boca de todos os que se interessam por educar os médicos. Steven Wartman e Donald Combs discutem com clareza este assunto num artigo recente da AMA Journal of Ethics. Sugerem, estes autores, que se devem valorizar, nos modernos curricula, mais a gestão do conhecimento médico do que a própria aquisição de conhecimentos. Por isso, os alunos têm que aprender a lidar com as fontes de conhecimento, de forma autónoma, sabendo separar o trigo do joio, coisa que terão que fazer toda a vida.

Este é um conceito que cada vez deve merecer mais a nossa atenção pois muito está a mudar na forma como é informado o mundo da IA que sustenta a informação médica. Embora se mantenha o conceito da revisão por pares dos artigos publicados nas principais revistas médicas, o número de publicações tem aumentado exponencialmente, sendo cada vez mais difícil gerir, no dia-a-dia, essa informação. As notícias falsas são frequentes e infelizmente acessíveis ao cibernauta comum que não as sabe filtrar. Os profissionais viram-se então, perigosamente, para os instrumentos informáticos negligenciando o que deve ser o primeiro ensinamento da clínica: a comunicação com quem sofre e a cultura da empatia.

Saber comunicar e gerar empatia são os pilares fundamentais dos profissionais de saúde que têm que ser ensinados nos bancos da Escola Médica, pois muito do sofrimento humano resulta de insegurança e de medo. Toda a intervenção terapêutica exige um tempo de negociação empática para que seja mais eficaz. E tudo carece de explicação cuidada através da comunicação apropriada.

Quanto à multidisciplinaridade dos cuidados, existem hoje laboratórios que permitem treinar, em equipa, os profissionais a fazer, cada um, aquilo que lhe compete em sinergia e não em competição de tipo corporativo. O sucesso da boa relação entre os profissionais é fundamental para o sucesso da intervenção.

Sou, naturalmente, suspeito ao afirmar que os profissionais de saúde têm o privilégio único de entrar na intimidade de quem os procura, quer no que respeita à intimidade física, quer no que diz respeito ao acesso aos segredos que dantes se partilhavam só na confissão dos pecados, quer ainda no que respeita às questões complexas da dimensão espiritual. Os profissionais de saúde são, por isto tudo, muito difíceis de formar e de manter bem informados ao longo da vida, devendo merecer o respeito da sociedade sob risco de virem, no futuro, a não serem nada disto, para prejuízo de todos.

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