Quanto vale a vida deles?

Os militares são “boa moeda” que o país não aprecia devidamente e que os políticos respeitam com o indisfarçável enfado do dever de ofício.

Tirando um avô, que nunca conheci, sargento do Corpo Expedicionário Português, que foi voluntariamente combater e cair ferido em França, na grande guerra de 1914-18, não tenho qualquer ligação familiar às forças armadas. Limitei-me a cumprir 18 meses de serviço militar obrigatório na Força Aérea, entre 89 e 91, e durante muito tempo, por hábito irreflectido de dizer mal por dizer, pensava que a tropa não serve para nada. Estava errado. Muitos anos depois convivi de perto com centenas de militares destacados no Kosovo e pude testemunhar as qualidades de carácter, honra, palavra, coragem e espírito de serviço das nossas forças armadas. Não digo isto por favor; digo-o por justiça. Os militares são, sem dúvida, “boa moeda” que o país não aprecia devidamente e que os políticos respeitam com o indisfarçável enfado do dever de ofício.

Às vezes esquecemos que as forças armadas, para além da segurança e defesa do território e dos cidadãos e da cooperação em contingentes internacionais humanitários e de paz, onde recolhem elogios unânimes pela elevada qualidade do seu trabalho, desempenham outras missões insubstituíveis no apoio às populações, em busca e salvamento, evacuações médicas, transporte de órgãos para transplante, combate a incêndios e auxílio em catástrofes naturais. Só em 2017 foram empenhados 51.081 militares em 6934 missões de interesse público, não relacionadas com a defesa.

Também esquecemos muitas vezes a singularidade da condição militar. Quem mais de nós está obrigado, moralmente, por juramento diante da Bandeira Nacional, e juridicamente, por imposição legal expressa, a sacrificar a própria vida pelo país? Em todas as funções são exigidos sacrifícios, mas uma pessoa vincular-se ao dever jurídico de dar a vida pelos outros não tem paralelo. Isto não é teoria nem conversa. Há neste momento centenas de homens e mulheres destacados em missões internacionais, várias delas em palcos de elevado risco, como no Afeganistão, Iraque e República Centro-Africana. Nesta última, a força MINUSCA, da ONU, já teve 75 mortes desde 2014 e os nossos militares entram frequentemente em acções de combate armado. Desde 1991 destacámos 36.363 militares em missões internacionais e tivemos 20 mortes em serviço (17 das forças armadas e três da GNR). Ainda recentemente, um jovem soldado, de 23 anos de idade, perdeu as duas pernas na República Centro-Africana, numa missão de transporte logístico.

Isto para nem falar das sequelas psicológicas com que muitos regressam às famílias. Segundo o estudo As consequências a nível da saúde psicológica da participação na guerra do Afeganistão e Iraque (Carlos Osório e Ângela Maia, Revista de Psicologia Militar, n.º 19, 2010), 3% dos militares regressados das missões preenchiam totalmente e 10% parcialmente os critérios de perturbação de stress pós-tramático. Desses militares, 71% tinham participado em combates em que podiam morrer, 81% tinham visto inimigos feridos e 23% mortos, 15% tinham ferido e 10% matado inimigos.

Recentemente, na nota anexa à promulgação da revisão do estatuto dos juízes, o Presidente da República chamou a atenção para a necessidade de aumentar as remunerações nas forças armadas. Nisso tem razão. E há mais coisas que precisam ser vistas. Como alertou o chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, os recursos humanos necessários para assegurar as missões estão numa situação insustentável. Falta pessoal na força aérea para a vigilância das próprias unidades, a marinha tem navios com tripulações incompletas e no exército há regimentos com 100 praças, em vez das 360 que deviam ter. Mais ainda, por causa dos baixíssimos salários (um 1.º cabo aufere menos de mil euros ilíquidos por mês), há uma constante sangria de praças para outras funções melhor remuneradas, deixando as forças armadas sem o pessoal necessário para cumprir as missões.

É este o ponto: exigimos muito a quem dá tudo em troca de pouco. Por isso, em vez de sugerirem levianamente a demissão dos chefes militares que, por dever e sentido de responsabilidade, dizem o que deve ser dito (como fez o ministro da Defesa), os nossos governantes deviam era tratar as forças armadas com a dignidade que merece. Pode não dar muitos votos mas é justo e necessário.

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