Nem guerra, nem batalha. Estudo defende que expressões bélicas devem ser excluídas do tratamento do cancro

Termos como “travar uma batalha” ou “vencer o cancro”, fazendo o paralelismo entre a doença e uma guerra, poderão ser mais prejudiciais que benéficos, indica um estudo da canadiana Queen’s University.

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Metáforas de guerra potenciam uma atitude fatalista que os psicólogos avaliam como nefasta para a prevenção Fernando Veludo/NFACTOS

O uso de metáforas que remetem para um cenário de guerra faz com que o tratamento do cancro pareça mais difícil, deixando as pessoas mais fatalistas e com menor intenção de apostar quer na prevenção quer na terapêutica. Esta é a conclusão preliminar de um estudo sobre o impacte psicológico que as frases têm sobre a visão das pessoas acerca do cancro especificamente.

“O nosso trabalho sugere que as metáforas de guerra podem ter um impacte negativo na maneira como as pessoas vêem o cancro e esses pensamentos podem prejudicar as intenções de adoptar comportamentos saudáveis”, considerou o psicólogo da Queen’s University (Ontário, Canadá) David Hauser, citado pelo jornal britânico The Guardian.

Hauser acrescenta ainda que, apesar de esta linguagem ter sido desenvolvida no sentido de motivar os pacientes, nada indica que as expressões bélicas tenham esse efeito. “Usam-se as metáforas [bélicas] a julgar que elas têm um impacto benéfico, ou pelo menos nenhum impacto negativo, mas ninguém estudou o assunto.” E, encontrando esta lacuna, David Hauser juntou-se ao professor de psicologia na Universidade da Califórnia do Sul Norbert Schwarz para estudar o impacte das metáforas da guerra no tratamento do cancro.

Com uma amostra de quase mil voluntários saudáveis, os investigadores realizaram quatro diferentes testes, entregando pequenos textos para leitura sobre doentes com cancro, cuja linguagem variava, registando a reacção dos grupos. Um grupo leu excertos com metáforas bélicas, em que o discurso incluía palavras como “atacar”, “invadir” e “lutar”; outro, com metáforas relacionadas com viagens; e um terceiro pôde apreciar um excerto sem qualquer metáfora. 

O que observaram aponta para que as pessoas que lidam com metáforas de guerra tenham maior propensão a classificar o tratamento do cancro como muito difícil, ao contrário daqueles que leram o mesmo texto com metáforas de viagem ou sem metáforas. De acordo com o investigador, entrevistado pelo The Guardian, quem leu o excerto com palavras agressivas teve uma maior tendência a concordar com declarações como “se alguém está destinado a ter cancro, tê-lo-á, independentemente do que faça” — uma atitude fatalista que os psicólogos avaliam como nefasta para a prevenção.

Ambos os investigadores, que admitem a necessidade de aprofundar a investigação sobre o impacto das metáforas no que ao tratamento do cancro diz respeito, alertam a comunidade médica, os media e as associações de apoio para que evitem esse tipo de terminologia.

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João da Silva, autor de dois livros dedicados também à doençaO Sofrimento Pode Esperar (2016, ed. Albatroz) e Quantas Vidas Temos? (2019, ed. Coolbooks) — e que descreve o seu percurso como ter vivido com cancro (três), feito hemodiálise e tido um transplante renal, considerou, em declarações ao Culto, que “quem acompanha a pessoa que padece de cancro deve intervir de uma forma diferente, incutindo outra filosofia que não a bélica”. E explica: “Todos sabemos, e os profissionais de saúde melhor do que ninguém, que o cancro não é uma coisa que se resolva de um momento para o outro. Não podemos simplesmente fazer explodir uma bomba para acabar com a coisa de vez.” Por isso, defende, “há que substituir a guerra pela diplomacia, recorrendo a uma abordagem mais racional”

“A revolta e a situação de injustiça vão consumir boa parte da energia que a pessoa com o cancro necessita para a lidar com tudo o que envolve a doença, e que é muito e a diversos níveis”, conclui.

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