Uma história feminista

A História mostra-nos que a compreensão para determinadas coisas só se atinge, muitas vezes, depois do sangue derramado. A humanidade sofre de um problema de compreensão lenta.

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Mag Rodrigues

A mulher foi atingida por um cavalo a galope. Segundos antes assistia à corrida de cavalos segurando um cartaz nas mãos — VOTES FOR WOMEN. Pedia o direito de voto para as mulheres. A frase em nada se relacionava com o ambiente equestre. Devia ter-se previsto a tragédia. A mulher lançou-se para a pista, talvez sem prever que o faria, e foi atingida, sobretudo na cabeça e no tronco, por um animal possante. A audiência viveu o choque dos corpos derrubados — a mulher, o cavalo e o jóquei do rei. Três feridos na pista. A História mostra-nos que a compreensão para determinadas coisas só se atinge, muitas vezes, depois do sangue derramado. A humanidade sofre de um problema de compreensão lenta. Um certo atraso mental, digamos, em relação ao que seria expectável em milhares de anos de evolução desta espécie a que se resolveu chamar humana (do latim homo sapiens, “homem sábio”).

O acto da mulher concentrava muita revolta por humilhações várias. Anos antes fora presa por ter atacado um homem que julgara ser o ministro das Finanças. Um equívoco grave. Foi ridicularizada e presa por inúmeros delitos. Na prisão continuaram as petições em prol da defesa dos direitos da mulher, com resultados nulos. Durante o encarceramento, a mulher fez greve de fome até as guardas prisionais decidirem alimentá-la à força. Entraram na cela quatro guardas ossudas, munidas de cintos para lhe prenderem os braços. Depois de imobilizada, enfiaram-lhe um funil de ferro na boca e despejaram-lhe comida triturada directamente nas goelas. Quase a asfixiaram. A mulher sobreviveu a este e a outros incidentes.

Ainda no estabelecimento prisional, como símbolo de protesto contra as iniquidades misóginas, atirou-se de uma escada de ferro. Ouviu a coluna vertebral estalar no embate. A queda produziu lesões graves na espinha dorsal. Dali em diante, viveu todos os dias com dores inenarráveis. Mesmo diminuída fisicamente, continuou a luta.

No dia das corridas de cavalos, a mulher tinha já comprado o bilhete de comboio de volta e a entrada para um baile que iria acontecer mais tarde. Por isso, alguns disseram que a mulher apenas intentava colocar o cartaz — VOTES FOR WOMEN — no dorso do cavalo e continuar a sua vida. Talvez não desejasse morrer. Não importa, a acção fora executada. A atenção para uma causa fora conseguida. As imagens foram impressas e divulgadas em jornais do mundo inteiro.

A mulher morreu no hospital, quatro dias depois do incidente. O cavalo, depois de aposentado das corridas, viveu como um campeão. O jóquei suicidou-se 40 anos mais tarde, utilizando o gás do fogão de sua casa.

Depois do funeral da mulher, cartazes-ultimato foram envergados por raparigas vestidas de branco. FREEDOM OR DEATH. Exigiam liberdade ou a morte. Não mais se calariam. Anos depois, as mulheres conseguiram o direito ao voto.

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