O fim da greve

A imposição de “serviços máximos” fará com que qualquer Governo futuro considere esta situação um precedente legítimo. E, nessa altura, com que legitimidade poderão os partidos de esquerda reclamar que se estão a pôr em causa os direitos dos trabalhadores?

Ao dia de ontem, a Antram e o Governo ganharam a batalha da comunicação pública aos motoristas de materiais perigosos, de mercadorias e de transportes rodoviários e urbanos do norte. A esmagadora maioria dos portugueses está hoje convencida que esta greve é porque os motoristas de pesados são gananciosos – porque já ganham muito, estando inclusivamente a circular online supostos recibos de vencimento. Inclusivamente, começaram a sair notícias, tal como já tinha acontecido com a greve dos enfermeiros há uns meses, sobre os alegados interesses obscuros dos dirigentes sindicais: no caso dos enfermeiros, falando sobre os privados da saúde que estariam a controlar a greve através de doações ao seu fundo e, no caso dos motoristas, como não há fundo que se possa atacar, através de alegadas acusações de burla a um dos seus, mais mediáticos, porta-vozes. Mais, começou a falar-se insistentemente em como os sindicatos ditos independentes – ou seja, que não estão afetos às grandes centrais sindicais, como sejam, por exemplo, a CGTP-IN e UGT – seriam populistas e radicais.

Os sindicatos não foram capazes de explicar à opinião pública os motivos para as suas greves e, consequentemente, ficaram com a maioria do país contra eles. É um caso particularmente gritante, este dos motoristas, já que, não havendo fundo de greve, seria fácil demonstrar que esta vai prejudicá-los financeiramente no imediato e que não é a ganância que os move. Adicionalmente, com muitos a acharem que no privado não há greves porque não se está protegido como os trabalhadores em funções públicas, o facto de esta greve ser apenas de pessoas que trabalham em empresas privadas deveria ter sido utilizado no debate público. Esta situação demonstra que quem está à frente destes sindicatos são amadores nestas lides. Uma CGTP-IN conseguiria mobilizar tanto os partidos de esquerda como, pelo menos, parte da opinião pública em seu favor.

Quais têm sido os resultados dos sindicatos “não-independentes” até agora? As suas greves são normalmente bastante limitadas no tempo e no impacto e, consequentemente, os resultados à mesa da negociação têm sido diminutos. Enquanto as greves nos transportes públicos de Lisboa fazem alguma mossa – afinal, quem decide mora em Lisboa e sofre com o trânsito acrescido –, basta olhar para o que tem acontecido com as greves dos professores para se perceber que o impacto e, consequentemente, as cedências por parte do seu empregador, o Estado, têm sido reduzidos. O que aconteceria se os professores fizessem greve por tempo indeterminado em tempo de aulas? As negociações provavelmente teriam um desfecho diferente até porque, curiosamente, esta é uma área que não está sujeita a requisição civil.

Poder-se-á dizer que os professores não quereriam perder o salário correspondente a tantos dias de greve. Certamente, mas isso então deveria abrir-nos os olhos em relação aos motivos dos motoristas para fazerem greve, já que também vão ficar sem salário durante os dias que esta demorar. Se estão dispostos a arriscar tanto, será que é ganância o motivo ou será que têm justificações bem válidas para tudo isto?

Esta questão parece ser, agora, irrelevante. O Governo decretou, aparentemente, de forma legal, serviços “mínimos” que, na prática, fazem com que a greve cause muito pouco dano, essencial como meio para conseguir cedências da outra parte ou negociações. O Governo, ao decidir desta forma, fez com que a greve se esvaziasse ao ponto de não haver qualquer motivação para a Antram em considerar os argumentos dos motoristas e voltar às negociações.

E o que acontece se os motoristas decidirem ignorar os serviços “mínimos” decretados pelo Governo? Diz a doutrina que a única solução dada pela nossa legislação é a requisição civil, que o Governo entretanto também decretou. Nestes últimos dias, no entanto, fomos brindados com o aparecimento de algo novo: a “requisição civil preventiva”. Esta figura, que não existe no nosso ordenamento jurídico, foi legitimada pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República depois de ter sido anunciada pelo Governo. Esta requisição civil preventiva tem dois grandes defeitos: o primeiro é que tem um “efeito dissuasor, fazendo abortar greves ainda em gestação – capazes de neutralizar aquele direito, que teve a sua consagração no nosso texto constitucional logo a partir da sua versão original.” Não sou eu que o digo, é o acordão de 20 de março de 2002 do Supremo Tribunal Administrativo, com publicação de 29 de outubro de 2003. O segundo defeito, que emana do mesmo acordão, é que não é legal: “a ameaça feita pelo sindicato de que esses serviços mínimos não serão assegurados não serve de fundamento à requisição civil, que não pode ser decretada a título preventivo”, diz, taxativamente.

Com a imposição da requisição civil – a não preventiva –, e não cumprindo os serviços mínimos, os grevistas são, compulsivamente, requisitados pelo Estado e ficam adstritos ao Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos. A requisição civil é, na prática, um vínculo laboral temporário com o Estado. Ou seja, se, para além de não cumprirem os serviços mínimos, não cumprirem também a requisição civil, ficam sujeitos às sanções disciplinares previstas no referido Estatuto: repreensão escrita, multa, suspensão, despedimento disciplinar ou demissão. Lendo as condições em que cada uma é aplicada, os trabalhadores que não cumprissem com a requisição seriam alvo de uma suspensão. Adicionalmente, como o próprio primeiro-ministro tem referido insistentemente nos últimos dias, não cumprir com a requisição civil pode levar, em casos extremos, ao crime de abandono de funções ou ao de desobediência. Claro que todos sabemos que já houve vários casos de trabalhadores que, simultaneamente e misteriosamente, contraíram a mesma doença e tiveram que meter baixa médica.

Note-se que não advogo tal tipo de desrespeito ou circunvenção à Lei. Pelo contrário, acho que ela deve ser cumprida em todas as circunstâncias. No entanto, é necessário contrariar alguns argumentos errados que têm vindo a público, inclusivamente de pessoas com responsabilidades. É também importante demonstrar que, no que toca às greves, a Lei está perfeitamente adequada, ao contrário do que muitos dizem agora quando antes as aplaudiam. A Lei considera medidas crescentemente dissuasoras, que só são ultrapassadas se o desespero dos grevistas for comparativamente elevado. É, portanto, necessário bom senso por parte do Governo ao aplicar a legislação em vigor.

Ao serem decretados serviços mínimos de 100% em alguns casos, está-se a abrir a caixa de Pandora. Esta forma artificial de chegar à tão falada e almejada “paz social” implica, a prazo, o esvaziamento da greve como forma dos trabalhadores de conseguirem cedências dos seus empregadores, que, normalmente, “têm a faca e o queijo na mão”. É causando dano aos empregadores e, colateralmente, aos portugueses, que se obriga tanto aqueles como o próprio Governo – sempre muito atento à sua popularidade, especialmente em anos de eleições – a decidirem que é mais benéfico sentarem-se à mesa das negociações. A imposição de “serviços máximos” fará com que qualquer Governo futuro considere esta situação um precedente legítimo. E, nessa altura, com que legitimidade poderão os partidos de esquerda reclamar que se estão a pôr em causa os direitos dos trabalhadores?

(Declaração de interesses: sou militante do Partido Socialista desde 2006)

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