Nós, eles e o SNS

Porque é de Saúde que falamos, não bastam slogans bem-intencionados. Precisamos que nos digam a verdade do que falam e se Portugal terá condições de desenvolvimento económico, crescimento financeiro e madura responsabilidade política que permitam o cumprimento desta missão.

Entre questões de diferente relevância, “nós, eles” e “saúde” são temas que, nas últimas semanas, mais comentários têm suscitado na sociedade portuguesa.

O 10 de Junho deste ano, focando núcleos centrais da condição e comportamento humano, desencadeou uma acesa controvérsia. A invocada necessidade de “eles” se lembrarem de que “nós” devemos contar para alguma coisa mais que pagar impostos, tal como quando em 2012 António Sampaio da Nóvoa chamou a atenção para “a necessidade de recuperar um novo sentir colectivo, necessária e corajosamente, assumido por todos”, desencadeou uma profunda agitação cujas réplicas continuam a fazer-se sentir.

A controvérsia suscitada pela diferenciação do “nós” e “eles”, se polémica à luz do ideário republicano, tem, em respeito pelo entendimento pragmático “das coisas”, pleno cabimento no domínio da Saúde.

Bem conhecedores da situação, “nós” sabemos que precisamos de bons cuidados de saúde. Sendo que “eles” também sabem do que falamos, coloca-se a questão da concretização sustentada de um “Serviço Nacional de Saúde universal, aberto e tendencialmente gratuito”. 

Afirmações como “nunca houve tantos médicos e enfermeiros no SNS” e que o “SNS vai ter consultas aos sábados” e a exigência de “menos tempo de espera para consultas e cirurgias”, “a ausência de gestão privada de unidades públicas de saúde”, o “fim das taxas moderadoras”, uma nova e “progressista Lei de Bases”, a par das greves constantes, objectivam com inaudita transparência o momento de profunda perturbação que atravessa a Saúde.

A superficialidade dos conteúdos e a noção de responsabilidade dos seus promotores, evidenciadas pelas reacções políticas que têm desencadeado, aconselham uma reflexão responsável, serena e consistente orientadora do Governo para novos “modelos e soluções” adequadas – possíveis? –​ às reais capacidades que o País possa sustentar.

Será um estudo fundamental para a credibilidade do “tipo e qualidade” da Saúde em Portugal. “Saúde como jóia da coroa” e “SNS como desafio” é como “eles” dizem querer que “nós” vejamos a verdade e determinação das suas intenções.

Admitindo que só agora existam condições financeiras para as equacionar e é autêntico o desígnio, importa definir que “tipo de jóia” e “desafio” estão em causa e saber se o Governo, enquanto “superior decisor” do Estado, estará em condições de querer – poder – recuperar o Serviço Nacional de Saúde.

Tema central de reflexão, implica três premissas de que importa guardar boa memória.

Começando por perguntar se é do “original SNS” que estamos a falar, impõe-se não esquecer a precoce conclusão de que sendo “tendencialmente gratuito”, o SNS era “obviamente insustentável”.

A terceira nota é para referir que, fruto de tempos e circunstâncias, do original “Serviço” Nacional de Saúde, o acrónimo SNS passou a significar “Sistema” Nacional de Saúde, integrador dos Sectores Público e Social do Estado e do Sector Privado.

Um dos mais lúcidos e respeitáveis responsáveis políticos afirma que, “apesar das fragilidades que todos reconhecem, o SNS está vivo e para reforçar as suas condições precisa de humildade na análise e competência na decisão”.

Concordando por inteiro com a análise, retenho que a perspectiva advém de “abordagens macro”, atendendo a que o Serviço Nacional de Saúde, com os Cuidados Hospitalares, integra os Cuidados Primários e o Sector Social do Estado.

Numa visão mais próxima, direi que reconhecendo a efectiva melhoria dos Cuidados Primários, inspirador sopro vital do SNS, e a virtude de reforçar o Sector Social, todos sabemos que “o que mais nos dói” é a situação do Sector Hospitalar, altamente fragilizado por uma prolongada doença crónica de estrutural indefinição política que o trouxe para uma caótica situação de pré-rotura, diariamente mais acentuada por todo o País.

O número de macas nos corredores dos Serviços de Urgência e de Internamento, os tempos de espera em Urgência e Cirurgias Programadas, as difíceis condições de qualidade assistencial e terapêutica e as condições de esgotamento físico e psicológico dos profissionais impostos pela carência de recursos, aconselham a que não sejamos comedidos na adjectivação da situação.

A delicada complexidade do problema permite-me dizer que para cumprir o SNS “bastará apenas” a capacidade de “saber pensar” e a séria “vontade de agir” para ultrapassar as seminais “questões de sempre”.

Coerência política para assumir a responsabilidade de recuperar um SNS substantivamente meritocrático, em que competência e dedicação dos profissionais serão o critério diferenciador de recrutamentos através de Concursos Nacionais de Provas Públicas.

Competência financeira para saber encontrar modelos sustentados de financiamento, não escamoteando que “com a saúde cada vez mais cara”, o SNS terá custos anuais, sistemática, continuada e exponencialmente muito superiores aos 9,1% do PIB alocados à Saúde em 2018.

Porque é de Saúde que falamos, não bastam slogans bem-intencionados. Precisamos que nos digam a verdade do que falam e se Portugal terá condições de desenvolvimento económico, crescimento financeiro e madura responsabilidade política que permitam o cumprimento desta missão.

Porque “só a mentira envergonha”, recordo a posição recente de Ramalho Eanes quando diz que “cabe ao Estado o dever de definir o interesse geral e suas regras, o que não quer dizer que o Estado, fixando as regras do jogo, deva ele próprio fornecer os serviços. Aliás, os serviços prestados pelo Estado e por outrem que não o Estado nessas áreas permitem, em minha opinião, uma comparação em qualidade e controlo de custos”.

Ramalho Eanes ilustra sabiamente a importância da ponderação crítica do mérito e da qualidade de intervenção que a moral e ética políticas devem ser as primeiras a querer ver recuperadas e, no domínio da Saúde, com a sua habitual profunda e pragmática análise de tudo quanto à res publica diz respeito, mostra a razão de ser do “Sistema” Nacional de Saúde. 

Em respeito pelo mais elementar dever de responsável humildade democrática urge que “eles” digam a verdade que o País pode esperar sobre o “tipo dessa jóia”, sabendo-se que é sustentada por um tripé de grande exigência financeira.

A) Recursos humanos. Superior diferenciação, elevada qualificação e empenho requerem condignas remunerações.

B) Manutenção das Plataformas tecnológicas. Regular e continuado funcionamento, mínimo de 14 horas diárias, significa um oneroso acompanhamento.

C) Actualização e modernização dessas mesmas Plataformas. A evolução dos saberes e a vertiginosa rapidez da inovação tecnológica fazem com que a vida média útil destes sofisticadíssimos equipamentos não seja muito longa, expressando custos exponencialmente mais elevados.

Repito que não sei se Portugal terá capacidade financeira bastante para “o desafio” do SNS, mas sei que esse elevadíssimo valor orçamental, inteligentemente planeado, lucidamente programado e racionalmente cumprido de forma responsável e responsabilizadora, será recompensado por um forte retorno de “enriquecimento substantivo” do País, que começa a ser atenuado pelos “milhões de milhares” de euros desbaratados em fúteis e estéreis medidas avulsas.

No Sistema Nacional de Saúde forte, sólido e de qualidade, importa que os Sectores de Saúde do Estado estejam cooperativamente articulados, cabendo ao reforçado Sector Social a partilha de áreas tão importantes como os Cuidados de Saúde de Proximidade, Cuidados Continuados e Paliativos.

E, com não menor importância, que a convivência entre os Sectores Públicos e Privado, transparente e saudável na mais restrita acepção moral e ética do conceito, se autoregule em recíproca e inatacável coerência de códigos de conduta.

O mínimo que “nós” podemos exigir é que “eles” tenham a humildade de nos esclarecer sobre os “verdadeiros custos da Saúde” e as competências para responder sustentadamente a este direito social que “não tem preço”.

Temo que não venhamos a ter acesso a essa informação porque, objectivando a necessidade de soluções individuais mais confortáveis para alguns, o que com mágoa sentida evidenciará serão, sobretudo, o reforço das desigualdades de acesso que, não tendo sido erradicadas, vemos a adensar o horizonte na sociedade portuguesa.

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