O Governo que ganha com as crises

É à custa de um conflito social de proporções inéditas em tempos recentes que António Costa – aparentemente para desgosto de Marcelo – poderá atingir uma maioria absoluta que parecia, apesar do afundamento da direita, ainda inalcançável.

No final da crónica anterior escrevi que o alastrar dos conflitos corporativos – dos professores aos médicos e enfermeiros, entre outros, sendo a greve dos camionistas o seu ponto culminante – criaria um ambiente pouco propício à preservação da paz social em momentos decisivos do funcionamento da democracia, como é a época pré-eleitoral em que vivemos. E acrescentava que isso não seria nada conveniente aos olhos de quem, como o Presidente da República e o primeiro-ministro, mostrava tanto apego a esse clima de paz social.

Mea culpa: confesso que estava redondamente enganado (pelo menos no que se refere ao chefe do Governo). Por outras palavras: se teoricamente deveria ser como escrevi, na prática dá-se precisamente o contrário. É à custa de um conflito social de proporções inéditas em tempos recentes que António Costa – aparentemente para desgosto de Marcelo – poderá atingir uma maioria absoluta que parecia, apesar do afundamento da direita, ainda inalcançável.

Aqui emerge um dos traços característicos deste Governo: a sua capacidade de capitalizar as crises provocadas pelos outros ou converter em proveito próprio os erros alheios. Em contrapartida, o mesmo Governo repete o seu desacerto em gerir as crises que o afectam directamente no exercício do poder: os incêndios e a situação no interior do país, as carências dramáticas do SNS e da Educação, a promiscuidade entre a política e os laços familiares, por exemplo.

Se toda a gente reconhece em Costa uma notável habilidade política, essa habilidade manifesta-se essencialmente no aproveitamento dos deslizes dos adversários enquanto tanta falta lhe faz na prevenção dos deslizes governativos. Quem foram os maiores aliados de Costa na crise dos professores? Precisamente o PSD e o CDS. Quem foi o seu quase “agente duplo” na crise dos motoristas das matérias inflamáveis? Nada menos do que essa figura teatral do advogado-sindicalista Pardal Henriques.

Nem nas suas maquinações mais intrincadas para conceber uma personagem que lhe fosse tão útil no argumento da peça que ora decorre, Costa conseguiria inventar alguém como o advogado-empresário-sindicalista que Marinho Pinto gostaria de candidatar às próximas legislativas. Por mais capacidade mobilizadora que tenha para conduzir os motoristas até à greve, Pardal Henriques está irremediavelmente refém de uma ambição megalómana que o ultrapassa nos caminhos de uma negociação sem saída (e que acaba por ser aproveitada pelo patronato – e pelo Governo – mesmo quando as reivindicações básicas dos motoristas são justas e adequadas à precariedade e perigosidade das funções que desempenham).

A má-fé do patronato – o tal patronato “remediado” e sem recursos para pagar o que é devido aos seus motoristas – é mais do que evidente. Mas evidente também é o bloqueio negocial dos representantes dos dois sindicatos mais reivindicativos (o terceiro, próximo da CGTP, mostra-se prisioneiro das expectativas alimentadas pela entidade patronal…), o que talvez se explique pela pulverização sindical e a atracção populista dos seus novos protagonistas.

Tudo isto acabaria por beneficiar António Costa e constituir o II acto da peça que, depois do I acto dos professores, lhe coloca no horizonte o III acto da maioria absoluta. Daí também a forma pacificadora com que Costa começou por responder ontem ao repto sindical, sem recorrer de imediato à requisição civil (o que não quer dizer que a dispense em caso derradeiro, numa demonstração de força aplaudida pelos eleitores mais exasperados).

Como seria proveitoso para o país que o talento revelado por Costa em tais lides fosse empregue na gestão corrente do Governo, quando este chega tantas vezes mal e a más horas aos desafios do normal quotidiano português…

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