Para onde vai o (valor do) trabalho humano?

É um luxo mas nem sequer garante a sobrevivência de quem o faz” e “Chamavam-nos as putas dos bordados” são os títulos de dois excelentes trabalhos de jornalismo, de comunicação social, no PÚBLICO (jornalista Ana Cristina Pereira) de domingo (28/7/2019), sobre os bordados da Madeira.

Por razões profissionais, o autor deste texto conhece razoavelmente a organização deste trabalho. Mas, para além de outras vertentes destes artigos no PÚBLICO, interessa aqui frisar algumas passagens que, para além de darem razão ao título, transcendem-no, na medida em que suscitam a reflexão não só sobre o trabalho das bordadeiras da Madeira e do espectro do seu fim mas, também, sobre todo o “trabalhinho” do papão, tanto por aí propalado, da inexorabilidade do “fim do trabalho” em geral. Porquê? Se está próximo do “fim”, qual é a razão? Para onde é que vai e porquê o trabalho humano assim a desaparecer tanto?
Com adequada adaptação, poderiam explicar-nos desta maneira, com praticamente a mesma específica razão de fundo (os baixos salários) das bordadeiras da Madeira e com a mesma genuinidade, quaisquer trolhas da construção civil, quaisquer operadores-caixa de “grandes superfícies”, quaisquer operadores de atendimento de call centers, quaisquer operários da indústria de cortiça ou de componentes electrónicos ou para automóveis, quaisquer motoristas, etc..
Mas, recorrendo ao artigo, para explicar isso, nada melhor do que pôr a falar, ainda que “com as costas a doer, as pernas a adormecer e a agulha a picar o dedo”, as bordadeiras da Madeira:
- “Quando entro numa loja de bordados e vejo peças que me saíram das mãos, sinto um misto de orgulho e desfeita: olho para o preço e até me dá dores. Tão poucochinho que recebi e vê o que está aqui!” (Maria Abreu);
- “Há dias, vi um napperon que fiz e até fiquei a olhar. Ganhei nove euros e tal, estava à venda por setenta e tal”(Lígia Pereira);
- “Há tempos, mostrei uma toalha que bordei a uma antiga patroa. Ela disse que comprou uma igual por 1.500 euros. Eu recebi cento e nove euros” (Lígia Pereira);
-“Ninguém em todo processo ganha tão mal” (Guida Vieira);
- “Não se convencem que sem bordadeiras não há bordados” (Guida Vieira);
- “Se o pequeno núcleo de bordadeiras não for bem pago, o bordado vai acabar” (Guida Vieira).
Para onde foi e vai o valor (bem exposto na montra, sobre um artigo mercantilmente considerado de luxo...) do trabalho com salário de “lixo” das bordadeiras?
E, depois, se generalizarmos e dissermos: se o trabalho não for bem pago... é o “fim do trabalho”, por exemplo, pelo menos temporariamente, numa greve? Muita gente se escandalizará, não?
Para onde vai o valor do trabalho?
Vem aí – dizem – o “fim do trabalho”. Mas convém perguntar, para onde é que ele vai, o trabalho e o seu valor, assim a “desaparecer” tanto. Interrogam-se as bordadeiras da Madeira sobre isto. Mas não só, também os trabalhadores em geral. Os salários de “lixo” no “mercado de trabalho”, face ao valor de luxo do trabalho no mercado das mercadorias são uma explicação.
Mas, voltando a uma reflexão de há uns anos, há mais razões para o “desaparecimento” do trabalho para além da apocalítica robotização e automação: clandestinidade, subdeclaração, dissimulação, precariedade, (sobre)intensificação (em duração e ritmo, sub(sub, sub, sub...)contratação, deslocalização globalizada...

Se se justifica, como quanto ao trabalho das bordadeiras da Madeira e não só, perguntar para onde (quem...) vai o valor do trabalho humano, agora, que tanto se fala (por que será?) do “fim do trabalho”, mantém se a pertinência de, mais em geral, se perguntar, como aqui no PÚBLICO se perguntava há uns anos (19/3/2015): Para onde vai o trabalho humano?

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