Alterações climáticas acabarão com machos de tartarugas-comuns em Cabo Verde

Estima-se que em 2100 nascerão quase só fêmeas de tartarugas-comuns por causa das alterações do clima. A população de machos desta espécie será afectada mesmo se o aumento da temperatura ficar abaixo dos dois graus Celsius desde a era pré-industrial.

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As alterações climáticas já estão a prejudicar as ninhadas de tartarugas-comuns (Caretta caretta) em Cabo Verde. Actualmente, estima-se que 84% dos nascimentos de tartarugas desta espécie no arquipélago cabo-verdiano sejam já de fêmeas – e, em 2100, prevê-se que a situação se agrave e possam nem sequer nascer machos.

O sexo das tartarugas é determinado depois da fecundação, pela temperatura da incubação – quanto mais alta for, maior a probabilidade de nascer uma fêmea.

A conclusão de que o futuro destas tartarugas se avizinha difícil é de um estudo de cinco cientistas de Inglaterra, Cabo Verde e Espanha, publicado na revista Marine Ecology Progress Series. Este é o primeiro trabalho a analisar a distribuição de sexos, actual e futura, das tartarugas-comuns em todo o arquipélago cabo-verdiano, e não apenas nas ilhas de Boa Vista e do Sal.

O arquipélago é o terceiro local mais importante a nível mundial para a nidificação das tartarugas-comuns, representando 12.000 a 20.000 ninhos por ano. A maior subpopulação desta espécie encontra-se no Noroeste Atlântico (41,8% dos ninhos da espécie), enquanto a segunda está localizada no Noroeste do oceano Índico (representado 35% dos ninhos), de acordo com a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza. No total, existem dez subpopulações desta espécie.

“Cabo Verde alberga uma das maiores populações para a nidificação de tartarugas-comuns no mundo – até 15% do total global dos ninhos”, refere em comunicado uma das investigadoras do estudo, Lucy Hawkes, da Universidade de Exeter (Reino Unido). “Estimamos que 84% das eclosões sejam de fêmeas e as temperaturas mais altas vão aumentar esta proporção.”

Nesse sentido, os cientistas cruzaram os valores da temperatura actual e dados de nidificação das tartarugas-comuns com três projecções para o aumento médio da temperatura da atmosfera segundo o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) das Nações Unidas. “Nos três cenários de mudança climática concluímos que, em 2100, mais de 99% das eclosões serão de fêmeas. Em cenários de aumentos de temperaturas médios e altos poderão nem sequer nascer machos”, adverte a cientista.

No estudo enfatiza-se que, apesar de não existirem cuidados parentais nas tartarugas marinhas – depois de nascerem, as crias vão sozinhas para alto mar, só regressando à costa para desovar –, por norma constroem ninhos em locais que beneficiem as crias. Em Cabo Verde, as tartarugas-comuns costumam enterrar os ovos a 40 centímetros de profundidade, um dado tido em conta no estudo relativo à temperatura da areia.

“Está na altura de agir”

Usaram-se projecções do IPCC com três cenários de aumento médio da temperatura do planeta para 2100: baixo (1,8 graus Celsius), médio (2,8 graus) e alto (3,4 graus). O Acordo de Paris de 2015 estabelece que a subida da temperatura global da Terra deve ficar abaixo dos dois graus, de preferência pelos 1,5 graus, face aos níveis pré-industriais.

Um aumento de 1,8 graus significará, segundo o estudo, que 98,7% das tartarugas-comuns que nascerem apenas na ilha de Boa Vista serão fêmeas. Já nas ilhas do Fogo, Maio, São Nicolau e Santiago, bem como no ilhéu de Cima, a percentagem de fêmeas será mesmo de 100% no final do século XXI – ou seja, em todo o arquipélago 99,9% dos nascimentos serão de fêmeas. Neste cenário, a percentagem residual de nascimentos de machos para todo o arquipélago só é possível porque três praias da Boa Vista irão registar mais de 0,01% de nascimentos de machos: Varandinha, Boa Esperança e Lacação.

Havendo um aumento da temperatura do planeta de 2,8 graus, a ilha da Boa Vista será o único local de Cabo Verde onde ainda irão nascer machos de tartarugas-comuns, numa percentagem residual de 0,01%. Caso as temperaturas aumentem em 3,4 graus, não haverá eclosão de qualquer macho desta espécie no arquipélago em 2100.

“O que mais nos surpreendeu foi o facto de, mesmo em cenários de aumento de temperaturas baixos, existirem efeitos prejudiciais para esta população. Isto mostra-nos que está na altura de agir em relação às alterações climáticas, antes que seja demasiado tarde para impedir as estimativas deste estudo”, alertou Claire Tanner, autora principal da investigação também da Universidade de Exeter.

Ao PÚBLICO, esta investigadora explica que, apesar do estudo se focar na subpopulação de Cabo Verde, é expectável que esta tendência possa estender-se a outras subpopulações de tartarugas comuns: “As subpopulações desta espécie não acasalam entre si, pelo que o declínio de uma não pode ser mitigado pela outra através de migrações ou acasalamento com populações da mesma espécie.”

Esclarece ainda que, de uma forma geral, as tartarugas marinhas têm estruturas populacionais complexas, definidas pelas suas áreas de nidificação, alimentação e rotas migratórias. É possível que exista uma fracção mínima de acasalamento nas áreas de intersecção entre subpopulações, mas um outro estudo, que recorreu a análises de ADN, provou que esta possibilidade é mais baixa nas populações de tartarugas-comuns em relação a outras espécies.

Uma questão de adaptação

A equipa considera que as tartarugas-comuns até poderão vir a adaptar-se a estes cenários chocando os ovos mais cedo, numa altura do ano em que as temperaturas sejam mais baixas. No entanto, devido ao ciclo de vida longo destes animais (entre 47 e 96 anos) e à rapidez das alterações climáticas, a espécie poderá não conseguir adaptar-se tão rapidamente, aponta a Universidade de Exeter. Além disso, a antecipação da nidificação poderá aumentar a competição entre indivíduos desta espécie por um local onde chocarem os ovos, podendo levar a uma redução da fecundidade – uma vez que as fêmeas passariam a chocar menos vezes.

A isto acresce o facto de as tartarugas-comuns não poderem deslocar-se para outros locais onde as temperaturas sejam mais baixas. Cerca de 85% dos ninhos desta espécie em Cabo Verde estão localizados na ilha da Boa Vista, onde as temperaturas de incubação já são as mais baixas. “O local mais próximo [de Cabo Verde] numa latitude mais alta, onde as condições de incubação seriam mais frescas, está a 700 quilómetros de distância”, lê-se no artigo científico.

Um outro estudo, na espécie de tartarugas Mauremys reevesii, mostra que ainda existe a possibilidade de o próprio embrião se adaptar às temperaturas, mexendo-se dentro do ovo – por exemplo, se um dos lados estiver mais quente, o embrião pode mover-se para o lado oposto. No entanto, há limites para esta possibilidade: o embrião pode ser demasiado grande para se mexer ou ainda não ter desenvolvido todas as suas capacidades; em casos de temperaturas muito altas, este mecanismo de adaptação perderá o efeito.

Quanto às tartarugas-comuns, a melhor maneira para que a população de Cabo Verde se possa adaptar será em “refúgios temporários” – locais com condições mais frescas, possibilitadas pela sombra de árvores ou a morfologia da paisagem.

Texto editado por Teresa Firmino

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