Luta na lama

O combate sindical do momento vai ser fértil em episódios exigentes para o nosso juízo ético. Com o processo negocial em pedaços, estamos na fase da guerrilha.

Nos tempos da ditadura, havia uma figura que ombreava com os “pides” no asco que suscitava a quem amava a liberdade. Eram os “bufos”, essa figura sinistra do denunciante que muitas vezes trabalhava a troco de quase nada, mantendo debaixo de olho quem ousava pisar a linha. Podia ser um vizinho, um colega de trabalho, um familiar, alguém que, ao contrário dos “pides”, não tinha como profissão a repressão, mas que podia estar sentado ao lado de quem denunciava.

A figura ocorreu-me quando ontem ouvi o anúncio de que o Sindicato Independente dos Médicos queria que a Ordem dos Médicos (OM) sancionasse disciplinarmente os responsáveis clínicos dos hospitais que elaboram escalas de urgências sem o número adequado de profissionais. Para além de ser questionável que caiba à OM sancionar aquilo que não é um acto clínico, é difícil entender que pena deve ser aplicada a quem, mesmo gerindo recursos escassos, abaixo do que seria desejável, procura manter serviços em funcionamento.

Estes são mesmo novos tempos, a cheirar a bafio, quando há sindicatos que não hesitam em denunciar colegas para castigo e chegam ao ponto de nomear, numa rádio nacional, um chefe de serviço que eles acham merecedor de castigo. A situação das escalas é complicada – alguns médicos até já pediram escusa de responsabilidade em caso de eventuais falhas –, mas não vale tudo e não devia valer defenestrar as regras da civilidade e da solidariedade entre pares.

Não deixemos que se entranhe, mas não estranhemos, porque este é o espírito do tempo. O combate sindical do momento, o dos motoristas de matérias perigosas, se se prolongar, vai ser fértil em episódios exigentes para o nosso juízo ético. Com o processo negocial em pedaços estamos na fase da guerrilha.

Anteontem, cinco transportadoras, que não se quiseram identificar, apresentaram uma, no mínimo, duvidosa providência cautelar a pedir a ilegalidade da greve marcada para segunda-feira. E anteontem também o vice-presidente e rosto do sindicato voltou a ser notícia, pela negativa, por factos da sua actividade como advogado e patrão. Ontem teve direito ao contra-ataque, com a entrega de uma denúncia sobre fraude fiscal que será praticada por várias empresas de transporte. Se, noutra altura, poderia ser considerado um gesto de cidadania, nesta altura é só aquilo que parece, um gesto rasteiro.

A luta sindical é suposto ser uma causa nobre de defesa dos direitos dos trabalhadores. Isto é outra coisa e não é coisa boa. 

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