Morreu um inclassificável, Jean-Pierre Mocky: sem capela, sem clube, sem vaga

Cineasta cínico, mas sobretudo romântico, atravessou o cinema francês entre 1957 e 2017, com mais de 60 filmes de uma drôlerie tocante. Tinha 86 anos.

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Les Dragueurs, com Charles Aznavour: um ar de Nouvelle Vague mas um parentesco mais forte com a selvajaria do cinema italiano dos anos 50 e 60
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Alberto Sordi em Le Témoin, 1978

Cineasta cínico, mas sobretudo romântico, que atravessou o cinema francês entre 1957 e 2017, com mais de 60 filmes de uma drôlerie tocante que o manteve lá em cima na nuvem dos “inclassificáveis”, Jean-Pierre Mocky morreu esta quinta-feira, anuncia a imprensa francesa citando informação da família à AFP. Tanto foi cineasta do “filme de domingo à tarde”, dirigindo vedetas como Bourvil, Michel Serrault, Jeanne Moreau ou Catherine Deneuve, como habitante da série B, e em todo esse espectro foi verdadeiramente o autor dos seus filmes: realizador, argumentista, actor e produtor. Um “franco-atirador”: foi assim baptizado na retrospectiva que a Cinemateca Francesa lhe dedicou em 2014. No seu caso as categorias existem para serem baralhadas. Ele assumia-se como underground e era ao mesmo tempo “popular”.

“Jean-Pierre Mocky morreu em casa esta tarde, às 15 horas”, comunicou o genro, Jerôme Pierrat. E o filho, Stanislas Nordey, director do Théâtre National de Strasbourg, confirmaria o óbito. Nascido em Nice, em 1933, o seu verdadeiro nome era Jean-Pierre Mokiejewski.

Parente afastado da Nouvelle Vague, tendo começado a filmar na rua os jogos amorosos e sexuais da sua “tribo” com Les Dragueurs e Les Vierges (em 1959 e 1962, respectivamente, e ambos com Charles Aznavour), o que faz desses filmes documentos preciosos sobre os costumes numa Franca irrespirável (eram inícios já com uma selvajaria que o afastava de Godard e copains e o aproximava de alguns kamikazes italianos dessa era), deslocar-se-ia para o centro da indústria francesa (os esplêndidos divertimentos que são Un Drôle de Paroissien, de 1963, La Grande Lessive, de 1968, ou L'Etalon, de 1970, todos com Bourvil). Depois, porém, falariam mais alto a sua solidão, o sentido de irrisão e o romantismo algo fané. Nunca deixando, claro, de atirar às instituições, de “cheirar” os temas e as polémicas, da televisão à pena de morte, do sistema judiciário ao negócio da religião, mas sem nunca ceder às cerimónias do “filme de tema”: veja-se o magnífico Le Témoin, que Mocky várias vezes deu a entender que considerava ser o seu melhor filme, um perturbante encontro entre Philippe Noiret e Alberto Sordi, em terrenos da burguesia e da pedofilia, que pode ser etiquetado como “filme contra a pena de morte” mas que nunca faz aliança com uma tese. Foi dessa forma que Mocky filmou a França: Solo, de 1970, L’Albatros, de 1971, Le Piège à Cons, de 1979, com ele próprio, libertário e terminal, formam uma espécie de trilogia, “apanham” o país do pós-Maio de 1968 até ao final da presidência de Giscard D'Estaing e o início do “reinado” de Mitterrand.

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Solo: no pós-Maio 68

Solo é um caso – no volume da Histoire du Cinéma Français dedicado à Idade Moderna, o seu autor, Jean-Michel Frodom, referencia-o como “único filme de grande público directamente consagrado ao Maio de 68 e suas sequelas de que foi capaz o cinema francês mantendo-se fiel ao seu espírito”. É um exemplo jubilatório do bricabraque de Mocky. Começou, como muitos dos seus filmes, na rua, quando o cineasta ouviu num café de Paris, “no dia 10 de Maio” de 1968, uma conversa entre dois jovens sobre a ressaca, a revolução que ameaçava terminar, e por isso era preciso agir..., e desenvolve-se como um thriller americano, impondo o contra-mito como num western spaghetti italiano e cheirando o que aí vinha: o filme estrear-se-ia em Cannes em 1970 numa sessão à meia-noite que criou tumulto, por esses dias aprendia-se a dizer Baader-Meinhof...

Nasceu em Nice, foi pai pela primeira vez aos 13 anos e, tanto quanto ele podia saber, porque tinha desistido de contar, teria 17 filhos. Começou como figurante no cinema francês e, como muitos colegas compatriotas dos anos 50, foi actor no cinema italiano (I Vinti, de Antonioni, Gli sbandati, de Franceso Maselli, como conde italiano incapaz de se libertar dos compromissos da família com o ocupante alemão, ou Sentimento, de Visconti...). Mas fartou-se do seu rosto: não tinha aquilo de que, segundo ele, um actor precisa (um rasgão, uma cicatriz, uma deformidade...), e por isso decidiu realizar filmes. 

Godard devia gostar dele. porque lhe ofereceu papéis em filmes, Nome: Cármen (1983) e Grandeur et décadence d'un petit commerce de cinéma (1986). Mas foi nesses anos que os insucessos se pegaram às suas realizações, que a crítica também deixou de o seguir, e que Mocky resolveu comprar salas para nelas exibir os seus próprios filmes, casos do mítico Le Brady ou do L'Action Écoles, no Quartier Latin de Paris, que rebaptizou, muito apropriadamente, como Le Desperado (num filme dele, agora ouvir-se-ia Léo Ferré...). Os orçamentos tornar-se-iam cada vez mais miseráveis, ninguém o queria (... a fazer filmes; porque os plateaux de televisão adoravam tê-lo a polemizar), e ele respondia devolvendo uma velocidade imparável. São filmes que quase não se viram. E que de facto não se vêem: passam rapidamente por nós.

Há este statement de uma personagem de um filme de Jean-Pierre Mocky: “Prefiro ser eu próprio durante dez minutos do que outra pessoa durante toda uma vida.” Ou, como ele próprio disse: “Não pertenci a capela alguma, a clube algum nem a esta ou àquela vaga.”

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