Eurípides contra a estupidez da guerra, ontem como hoje

Troianas, de Eurípides, apresenta-se nas Ruínas do Convento do Carmo, até 17 de Agosto, numa encenação de António Pires. Uma peça a partir do ponto de vista das derrotadas e que expõe os horrores da guerra.

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Troianas tem início com o relato de Posídon (Hugo Mestre Amaro), deus dos mares Luísa Ferreira
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Maria Rueff é rainha Hécuba Luísa Ferreira
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Posídon anuncia a sua retirada porque “quando uma cidade sofre tão cruel desolação declina o culto e os deuses não recebem as devidas honras”, e as mulheres são esperadas por uma vida de escravidão Luísa Ferreira
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“O texto acaba com um terramoto e é quase como se o próprio espaço fosse um elemento figurativo do texto”, justifica António Pires Luísa Ferreira
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Troianas é uma reincidência do Teatro do Bairro numa abordagem dos clássicos “feitos sem nenhuma interferência” Luísa Ferreira
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A relação com o texto de Eurípedes é aqui mediada pela nova tradução de Luísa Costa Gomes Luísa Ferreira
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A ligação pode não parecer evidente, mas a presente encenação de Troianas, que o Teatro do Bairro apresenta nas Ruínas do Convento do Carmo, em Lisboa, até 17 de Agosto, começou pela imagem da ascensão de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos. Como se chega então de Eurípides a Trump, do século V a.C. ao século XXI? Quando, há três ou quatro anos, o encenador António Pires debatia com a sua equipa e escolhia os textos que ocupariam as temporadas seguintes da companhia, ao mexer em Brecht e nos seus escritos em torno da guerra e dos seus prenúncios, lembrou-se também deste que é “um texto antibélico e que expõe os horrores da guerra”, explica ao PÚBLICO.

Nesse momento “era mesmo muito assustador” assistir à chegada ao poder de alguém que parecia apresentar-se, precisamente, na antecâmara da guerra — ou de várias guerras, mais ou menos literais, mas a partir de uma posição de poder interpretada como posição de dominação. Falando de Ulisses, vencedor da Guerra de Tróia que o opunha ao rei Príamo e à rainha Hécuba (Maria Rueff), escreve a tradutora e dramaturga Luísa Costa Gomes no programa de sala que “aqui, a hybris, a arrogância da omnipotência, é do vencedor; a vitória leva-o à presunção de que pode fazer tudo”.

Troianas tem início com o relato de Posídon (Hugo Mestre Amaro), deus dos mares, lembrando que Tróia caiu aos pés dos gregos “por maquinações e esquemas da deusa Atena”, ela que levou o construtor Epeu da Fócida a fazer “um cavalo de madeira, grávido de gente armada”, mandando “para dentro das muralhas essa figura destinada à ruína da cidade”. O rei da cidade, Príamo, jaz assassinado, os navios gregos enchem-se de ouro e dos despojos troianos saqueados, Poíidon anuncia a sua retirada porque, “quando uma cidade sofre tão cruel desolação, declina o culto e os deuses não recebem as devidas honras”, e as mulheres são esperadas por uma vida de escravidão.

Tróia é uma cidade desfeita, queimada, em ruínas e também por isso se afigurou a António Pires um texto ideal para ser apresentado nas Ruínas do Convento do Carmo — espaço onde, nos últimos anos, o Teatro do Bairro tem concluído as suas temporadas. “O texto acaba com um terramoto e é quase como se o próprio espaço fosse um elemento figurativo do texto”, justifica. “Há muitas frases que escutamos e, olhando em redor, parece que tudo à nossa volta figura o que está a ser dito.”

Esta é também uma reincidência do Teatro do Bairro numa abordagem dos clássicos “feitos sem nenhuma interferência”, classifica António Pires. “Ou seja, sem serem reescritos ou mexidos, sem serem alterados dramaturgicamente, porque comecei a pensar que me apetecia trabalhar os clássicos tal como eles são, respeitando a essência do texto.” A relação com o texto de Eurípides é aqui mediada pela nova tradução de Luísa Costa Gomes, trabalhada com “a preocupação de ser uma tradução para ser dita e não para ser estudada”, diz o encenador. “Optámos por uma coisa meio bruta, as palavras ditas de uma forma muito directa. Isto prende-se também com a preocupação de passar a beleza do texto de uma forma mais eficaz.”

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As vozes derrotadas

As vozes com que Eurípides povoa Troianas são sobretudo, e daí o título, as das derrotadas. Aqueles que contam a derrota do ponto de vista feminino, das mulheres que sabemos estarem a caminho da completa humilhação e da escravatura. “Elas perdem tudo e são tratadas como despojos”, descreve Pires. E é assim que encontramos Hécuba logo no início, prostrada, lamentando-se: “Ai de mim! Ai de mim! Como hei-de não gemer de dor quando perdi tudo? Tudo. O meu país, os meus filhos, o meu marido!” As mulheres personificam a perda e a derrota, e são testemunhas da absoluta crueldade que se segue. É às mulheres que se pede que tolerem a insensatez e vivam em dor e sacrifício permanentes, como no momento em que Taltíbio (João Barbosa) anuncia a Andrómaca (Sandra Santos) que o seu filho, por decisão de Ulisses numa assembleia dos gregos, será morto para que não possa crescer o descendente de Heitor, um dos mais bravos guerreiros troianos. “Não te agarres ao menino, mas suporta a dor do teu infortúnio com coragem e nobreza”, roga-lhe Taltíbio.

Essa é também uma característica que, lamentavelmente, António Pires considera “muito contemporânea e pertinente”. A guerra, desde os parcos motivos que a originam às terríveis consequências que vai bolçando continuadamente, vai-se mostrando sempre como acontecimento bárbaro, irracional, estúpido. Tamanha crueldade, na verdade, há-de merecer o castigo engendrado por Atena, que logo promete que o regresso dos vencedores a sua casa, atravessando o mar Egeu, será minado por “um dilúvio violento de chuvas torrenciais” largado por Zeus para castigar os homens.

E se os deuses castigam, é porque as acções humanas a isso obrigam. Não são os desígnios dos deuses que forçam a mão dos homens. “Justamente, aquilo a que assistimos é algo muito humano, é uma guerra entre eles”, diz-nos António Pires. “Os deuses estão ilibados da tragédia de Hécuba, que é dada pela guerra e pelas suas consequências. Percebemos que é a estupidez dos homens que causa todo aquele horror.” No século V a.C., tal como agora.

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