Apparatchiks comprometidos ou pragmatistas virtuosos?

Não será difícil perceber como é que a cumplicidade dos mais ardentes críticos com certas práticas possa engendrar um fervor jacobino que impele muitos eleitores a acusar os partidos que nos governam de culpados e aqueles que os apoiaram de cúmplices.

Um apparatchik insurge-se contra o sistema ao qual pertence e do qual beneficia. Este acto de insurreição suscita inevitavelmente as seguintes perguntas: pode alguém que faz ou fez parte do regime existente criticá-lo com autoridade moral? A legitimidade moral da crítica requer uma ruptura radical com o sistema, um acto corajoso e em alguns casos heróico de abnegação? Será a ostracização ou a marginalização um requisito fundamental para determinarmos a credibilidade moral do crítico? Mandela, Luther King, Gandhi… Ou, pondo as coisas de outra forma, em que sentido é que a cumplicidade com determinado estado de coisas pode ser entendida por muitos como culpabilidade?

A formulação desta questão nestes termos é propositadamente provocadora. Parece que estou a falar dos intrépidos dissidentes e perseguidos dos regimes comunistas e fascistas. Todavia, a problemática que a suscita é real e pertinente: a responsabilização política dos que nos governam e representam por aqueles que são governados e representados. Por exemplo, pode o PCP e o BE invocar qualquer autoridade moral nas suas críticas às ajudas estatais concedidas à banca pelo governo PS? São eles que garantem ao presente governo a possibilidade de governar e de, por conseguinte, implementar estas (e outras) medidas que abominam. O “eu não concordo com o que fazes mas asseguro que o possas fazer” é uma postura algo incoerente, convenhamos. Pode um conservador neo-liberal do CDS, para quem o intervencionismo estatal na economia é um pecado capital, justificar as transferências estatais à banca durante o governo PaF com o argumento de uma (eternamente) potencial “crise sistémica”? O que aconteceu à miraculosa “mão invisível” do mercado e à sua infalível racionalidade? Pragmatismo, meu caro. Adiante. Pode um militante do PSD criticar um partido rival que fez e fará a breve trecho precisamente o mesmo que o seu partido fez em 2012/2013/2014? Pode, mas não deve.

Não será difícil perceber como é que a cumplicidade dos mais ardentes críticos com certas práticas possa engendrar um fervor jacobino que impele muitos eleitores a acusar os partidos que nos governam de culpados e aqueles que os apoiaram de cúmplices. BE e PCP tentam libertar-se de algumas memórias penosas do passado recente da “geringonça” com uma avaliação custo-benefício algo duvidosa, à luz da qual as “conquistas” da geringonça legitimam as muitas cedências e perversões ideológicas. Os dois partidos da esquerda radical buscam desesperadamente pela exoneração moral quando afirmam, quase em uníssono, que teriam conseguido mais se a célebre “co-relação de forças” tivesse sido outra, o que equivale a dizer: nós só seremos fieis aos nossos princípios e valores se e quando V. Exas., os eleitores, nos derem poder para tal. O que equivale a dizer: seremos coniventes com X, Y e Z até ao glorioso dia da maioria absoluta.

Dir-me-ão, certamente, que a política nas democracias liberais é feita de compromissos e de acomodações, não raramente incomodas para as partes envolvidas. Muitos celebrarão este pragmatismo profícuo mas algo desconcertante como uma virtude notável. Alguns eruditos interpretaram-no como um preâmbulo de uma nova e gloriosa era na política portuguesa. Construíram-se pontes onde existiam abismos mas, tal como Bauman previu, o futuro será líquido e, claro, as convergências e divergências “naturais” dos actores políticos serão necessariamente imprevisíveis e vaporosas. O que dizer das muitas incoerências, contradições e perversões na nossa vida política? O que devemos nós pensar acerca das “ambiguidades construtivas”, das concessões, dos avanços e recuos programáticos e das grandiosas promessas adiadas pelo pragmatismo da conjuntura, que irrompe em cena como uma materialização quase divina do sempre prudente bom-senso? Suspeito que as crenças possam vir a ser escravizadas pelas omnipotentes forças co-relacionadas. Não estou, evidentemente, sequer a sugerir que as diferenças ideológicas substantivas entre partidos são inexistentes ou inconsequentes. Estou simplesmente a tentar perceber como e porque é que são ofuscadas na percepção pública do processo político. 

O pragmatismo, a acomodação e o compromisso são mais importantes do que a integridade e a coerência ideológica numa democracia liberal? Porque é que os que não votam, a maioria silenciosa, parecem compartilhar a crença que todos os partidos políticos são iguais? E, sendo vistos como iguais, ou pelo menos como igualmente maleáveis, resta o quê? A elevação das diferenças pessoais, do personalismo, ao elemento diferenciador. Perdão, estou a ser populista?

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