O quadro negro da escola

É preciso que o paradigma de ensino e aprendizagem mude, é preciso que saia dos belos parágrafos da legislação portuguesa, das vozes que têm atrás de si os quadros negros enquanto proferem discursos inspiradores.

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daniel rocha

A escola enquanto instituição tem vindo a demonstrar pouca facilidade de adaptação à complexidade de sociedades em constante evolução — e muita resistência em acompanhar a evolução tecnológica. O paradigma escolar que a maioria de nós terá na memória é o do estudante sentado numa carteira a olhar para um quadro negro, enquanto alguém profere um conjunto de saberes que devem ser assimilados para depois serem reproduzidos. Na melhor das opções, a projecção no quadro negro é através de powerpoint e não com giz.

Esta relação de obediência, que assenta em duas posições de poder distintas, assume à partida que o detentor do saber é a figura do professor e que o grupo de estudantes dentro da sala de aula deve aprender algo pensado para mais tarde ser motivo de escrutínio. E, por muita vontade que tenhamos em alcançar um paradigma de ensino e aprendizagem diferente, a verdade é que na prática tendemos a contradizer-nos. E porquê? Porque é mais fácil ignorar que a aprendizagem se faz acima de tudo através da motivação do outro para aprender, ou seja, a aprendizagem pode acontecer por memorização, mas nunca será devidamente apropriada nem será mantida a médio/longo prazo e, portanto, não servirá para coisa alguma nem será conhecimento. Além disso, a maioria de nós não tem uma capacidade de memorização que permita decorar tanta coisa para, por exemplo, ser capaz de realizar dois exames distintos no mesmo dia. E se a maioria de vós disser o contrário também não me sinto mal sozinho.

É aborrecido ouvir alguém durante 1h30, quem tem paciência? Agora imaginem as crianças que acabaram de sair do pré-escolar e são obrigadas a estar sentadas e sossegadas durante duas horas a ouvir um adulto a dizer coisas que só são interessantes para ele ou ela; ou então adolescentes que vivem o maior drama das suas vidas porque perderam o primeiro grande amor, ou têm que actualizar as redes sociais, ou logo à noite vão ao seu primeiro concerto, e têm que estar dentro de uma sala a ouvir alguém a falar de seno, cosseno e tangente. Ainda por cima são gerações que não se encontram separadas da tecnologia, a tecnologia é praticamente uma extensão das suas existências. E, perante tantos estímulos electrónicos, como é que se mantém a concentração a preto e branco, ou mesmo a cores, num quadro negro?

Todos aprendemos se formos motivados para aprender, se nos for despertada a curiosidade, se encontrarmos utilidade nos conhecimentos que nos estão a ser disponibilizados. É certamente muito mais interessante aprender História e Geografia através do teatro; é provavelmente mais fácil e interessante aprender Matemática no recreio com desenhos e objectos; é definitivamente mais interessante aprender a estruturar a escrita através da construção de histórias ilustradas feitas em grupo. Contudo, a criatividade e imaginação que cada um de nós pode ter esbarra com um sistema fortemente estruturado em conteúdos predefinidos, um sistema que seleccionou e produziu os melhores memorizadores para assumirem a responsabilidade da reprodução, e coloca nos lugares de decisão aqueles que melhor provaram serem defensores do sistema.

Não há inocentes nem culpados, somos todos um pouco de ambos. É a velha ironia que todos ouvimos: ainda és novo e estás cheio de vontade de mudar o sistema, mas com a idade vais perceber que não vale a pena. Com o passar da idade terás cada vez mais receio de enfrentar o sistema, vais ter contas para pagar, vais ter filhos ou filhas, e todo o teu potencial revolucionário passa a reaccionário. É como um jovem futebolista promissor que passou a veterano e não se apercebeu.

Mas o pior — a fase da decadência — é quando os jovens promissores que passaram a veteranos entram em guerras geracionais. Ou seja, de repente parecem ter-se esquecido da infância e da juventude, e do nada fizeram parte de gerações incríveis, aprumadas, ajuizadas, estudiosas, brilhantes… E estas novas gerações estão perdidas porque são a revolução em andamento. A revolução de que outrora todos fomos portadores, mas fomos triturados pela força da engrenagem.

É preciso que o paradigma de ensino e aprendizagem mude, é preciso que saia dos belos parágrafos da legislação portuguesa, das vozes que têm atrás de si os quadros negros enquanto proferem discursos inspiradores, é preciso que não passemos o tempo a pedir a mudança e a recusarmos ser agentes da mudança, mesmo que o sistema seja tão difícil de enfrentar.

Nota: há 20 anos tive um professor de Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social, no 12.º ano, que informou os estudantes que as aulas se desenvolveriam através de notícias da actualidade, ou assuntos, que fossem pertinentes para aquela disciplina, e que a partir daí se geraria um debate por forma a que se fizesse a ligação com os conteúdos programáticos. Este modelo encontrou entusiasmos em cerca de três dos 23 estudantes, e os debates também eram participados por um número reduzido de estudantes. Foi apresentada uma queixa na direcção da escola por uma parte substancial dos estudantes da turma com a justificação de que o professor em causa não estava a seguir o manual da disciplina, nem a preparar os estudantes para os exames nacionais.

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