O quadro branco, e interactivo, da escola

Para que o paradigma do ensino mude é preciso, primeiro, permitir a reforma de dezenas de milhares de professores com mais de 55 anos e recrutar, em seguida, os 30.000 jovens professores sem outra alternativa para além do desemprego de há 20 anos para cá.

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Daniel Rocha

A escola, enquanto instituição, terá tantas ou mais dificuldades em adaptar-se à complexidade das sociedades em constante evolução na medida em que lhe cortarem os recursos, o financiamento, a renovação de quadros, a progressão dos professores e demais funcionários na carreira.

É tão simples quanto isso. A escola, a escola pública, entenda-se, só existirá enquanto for promovida e cuidada por quem a dirige. Tal não tem sido a realidade ao longo das últimas décadas num país onde os contratos de associação têm sobejamente favorecido escolas privadas cujas ligações com sucessivos governos são, no mínimo, preocupantes. Ainda para mais quando tais relações levam dirigentes a encher banheiras de ouro, para espanto geral.

Sejamos claros, sem escola pública só nos restam duas alternativas: o ensino privado, reservado e limitado a certas bolsas, ou assinar de cruz, como se estivéssemos de volta à Idade Média. Assim sendo, é nossa responsabilidade lutar pela dignificação da mesma sob pena de um retrocesso civilizacional onde as vítimas da ignorância não serão outros que não os nossos próprios filhos.

Como professores temos quadros brancos nas salas de aula. Brancos e interactivos, com projector e tudo. Mas, para os podermos usar, é preciso que os projectores funcionem em primeiro lugar. Inaugurados com pompa e circunstância no tempo dos governos de José Sócrates, hoje são muitos os projectores cujas lâmpadas fundidas estão por substituir. A título de exemplo, cada lâmpada dura 10.000 horas e custa 300 euros.

Felizmente ainda há quadros brancos. Não obstante, são os professores a comprar as canetas. Mas como as mesmas são caras quanto baste, há sempre os quadros pretos e o giz requisitado de antemão à senhora auxiliar. Se não for requisitado de antemão, nem giz há, só a imaginação.

Como professores, dedicamos não menos de 12 horas por dia, de segunda a sexta-feira, sábados e domingos de manhã incluídos, e este tempo de escrita durante as férias para que os nossos alunos, e com os nossos alunos as suas famílias, possam almejar por um futuro melhor.

Como professores fornecemos os materiais aos alunos, desde canetas a lápis, passando por afias e cadernos sem esquecer as fotocópias e a tinta para as impressoras da escola. E não, não temos anfiteatros, palcos, roupa, maquilhagem e adereços para poder ensinar História e Geografia. E sim, os recursos de Matemática somos nós quem os faz no nosso tempo, depois da escola e do trabalho, ao invés de nos dedicarmos às nossas famílias.

E sim, os materiais de desenho, as experiências de Biologia e Química, são todos preparados enquanto vamos às compras entre esquadros, corações de vaca e pernas de rã para dissecar juntamente com as compras da semana.

Porque os professores também têm direito a comer.

E, por falar em comer, como professores, para motivar os nossos alunos, temos, primeiramente, de lhes dar de comer, a eles, aos irmãos e aos pais, pais esses tantas vezes desempregados e sem condições de habitação. Só depois de satisfeitas todas estas necessidades básicas podemos pensar em motivar as crianças que, apesar de tudo, da fome, da pobreza, dos conflitos familiares, continuam a vir à escola. 

E, como professores, nem pensar dar prioridade a adolescentes cuja ordem natural das coisas consiste em namorar, actualizar as redes sociais ou assistir a um concerto. Afinal, foi para isso que se predefiniram os conteúdos educativos, ergo, a democratização do ensino onde é da nossa responsabilidade garantir que todos os alunos saem da escola com um mínimo de saberes adquiridos.

Quanto à obediência dentro da sala de aula, num país onde não há um professor numa escola pública que não se queixe da indisciplina, não percebo muito bem de onde vem.

Como professores, não debitamos, desafiamos. Como professores, não expomos, propomos. Como professores, não nos limitamos às quatro paredes de uma sala, vamos para a rua, para o pátio, vamos classificar árvores, estudar aves, irromper por museus adentro, colaborar com empresas, universidades e politécnicos, realizar estudos e fazer apresentações em público. Porque, além de ensinar, é necessário formar, educar, preparar os alunos.

Mas mais, é preciso conhecer cada aluno individualmente e, na sua individualidade, dar a ver a cada um deles um pouco do seu futuro, criando esperança, fomentando sonhos e encorajando cada criança e todas as crianças a ir mais além.

Porque memorizar conteúdos é pertença de séculos passados. Porque, como professores, aprendemos a aprender com o aluno e em conjunto formamos conhecimento. A não ser quando os exames nacionais estão à porta e o 12.° não é para brincadeiras, aventuras ou experimentações.

É este o papel do professor. É este o meu papel e o papel de todos os professores com quem trabalhei até hoje. Sem excepção. E por isso é que o ensino é uma paixão pela qual dedicamos uma vida. Apesar da precariedade. Apesar dos contratos incompletos. Apesar do desemprego quando chega Junho e Setembro — isto se tivermos tido trabalho nesse ano. Apesar da impossibilidade de formar família. Apesar de andar de terra em terra de mala às costas todos os anos. Apesar da ansiedade de não saber se para o ano temos emprego. Apesar de termos mais de 40 anos e andarmos nesta vida há mais de 20. Apesar de continuarmos a viver dependentes da ajuda dos pais e muitos são os anos em que pagamos para trabalhar. 

No ensino público só existem as engrenagens que sucessivos governos e reformas educativas imiscuíram nos métodos de ensino, nas cativações, nos rankings das escolas onde se misturam colégios privados com escolas inseridas em bairros sociais, facilmente denegrindo, diminuindo e humilhando o trabalho levado a cabo por milhares de professores e centenas de milhares de alunos em prol de uma minoria dirigente e privilegiada que ainda hoje se mantém nos mesmos cargos dirigentes e privilegiados.

Mas, para que o paradigma do ensino mude, é preciso primeiro permitir a reforma de dezenas de milhares de professores com mais de 55 anos. Mas, para que o paradigma do ensino mude, é preciso recrutar em seguida os 30.000 jovens professores sem outra alternativa para além do desemprego de há 20 anos para cá.

Tendo isto em conta, só posso dar os meus parabéns a quem insiste, hoje e sempre, em atacar a escola pública. Até agora têm sido bem sucedidos. Mas mais: até agora têm sido terrivelmente eficazes.

Até que um dia já não haja mais escola, professores e alunos e a educação seja um luxo ao alcance de apenas alguns. Já faltou mais. Enquanto esse dia não chega, continuaremos a lutar por uma melhor escola, pela educação dos nossos filhos, pelo futuro dos nossos filhos, pelo nosso próprio futuro, não só como sociedade, mas como espécie.

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