É preciso “defender os defensores do ambiente”: em 15 anos, houve mais de 1500 mortes

O número de mortes relacionadas com questões ambientais tem crescido a um ritmo “alarmante”, diz estudo na revista Nature. Os indígenas são dos mais afectados e o Brasil entra na lista com grande parte das mortes, num país em que Bolsonaro “traz novas preocupações”.

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Polícias a patrulhar a fazenda Santa Lúcia depois da morte dos dez activistas “sem terra”, em Maio de 2017 Lunae Parracho/REUTERS

Foi durante a manhã de 24 de Maio de 2017 que dez trabalhadores rurais, chamados “sem terra”, foram assassinados no estado brasileiro do Pará, naquela que é considerada uma das piores chacinas do Brasil dos últimos 20 anos. Tinham ocupado parte da fazenda Santa Lúcia e foram alvo de uma operação policial ao local para fazer cumprir 14 mandados de prisão – os primeiros relatos davam conta de que a polícia tinha reagido a um suposto confronto armado entre as vítimas, mas nenhum agente ficou ferido, nem os carros danificados. As provas reunidas dão a entender que o grupo foi executado – alguns estavam ajoelhados ou deitados –, mas os 17 polícias denunciados pela justiça continuam em liberdade, sem terem ido a julgamento.

É um dos casos em que os conflitos territoriais resultaram em morte. Neste caso eram trabalhadores rurais, mas há muita gente que morre a proteger as suas terras, ou florestas, cursos de água ou outros recursos naturais: são activistas ambientais, advogados, membros de movimentos sociais, jornalistas, povos indígenas, guardas florestais, membros de comunidades agrárias ou pessoas que resistiram a despejos forçados e intervenções violentas.

Em 15 anos (entre 2002 e 2017), morreram mais de 1500 pessoas a defender o ambiente ou as suas terras de práticas invasivas — a maior parte das mortes está relacionada com recursos naturais, sobretudo com a indústria agrária e mineira; e os indígenas são os mais afectados. A primeira frase do estudo que apresenta estes dados, publicado esta segunda-feira na revista científica Nature Sustainability, deixa-o claro: “A cada ano, morrem mais pessoas a defender o ambiente do que militares do Reino Unido e da Austrália destacados para zonas internacionais de guerra.”

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Familiares das vítimas mortas na fazenda de Santa Lúcia (Brasil) durante o enterro, em Maio de 2017 LUNAE PARRACHO

Estas mortes ambientais foram registadas em 50 países e a maior parte dos crimes acontece em países com corrupção e em que não é dada grande atenção ao cumprimento da lei, o que faz com que grande parte dos criminosos saia impune. A excepção é a Irlanda, a Costa Rica e o Chile; já Portugal e a maior parte dos países europeus não estão na lista. A falta de condenações pode também acontecer porque muitos dos homicídios acontecem em zonas remotas em que há pouco policiamento, o que pode dificultar a recolha de provas.

Quanto às vítimas, “pode ser qualquer pessoa que resista a violência”, admite em comunicado a investigadora Nathalie Butt, que fez parte do estudo. “E, mais importante, os povos indígenas estão a morrer em maior número do que qualquer outro grupo.” De resto, são pessoas que “intervêm de forma pacífica, profissional ou voluntária, para proteger o ambiente e os direitos territoriais. Podem ser pessoas que trabalham directamente nas terras, pessoas que as representam, ou defensores dos habitats e de espécies”, lê-se no estudo.

O grupo de quatro investigadores das universidades de Queensland (Austrália), Oxford e Sussex (Reino Unido) assevera que “os negócios, os investidores e os governos nos dois lados desta cadeia de violência têm de ser responsabilizados” por estas mortes e por toda a violência inerente.

O caso do Brasil

Durante os 15 anos analisados no estudo, houve 1558 mortes – ainda que o número possa ser maior por haver países em que a causa da morte não é devidamente registada, ou porque não há comunicação social livre para fazer passar a informação. Segundo os dados recolhidos pela organização não-governamental Global Witness, usados no estudo, o número de mortes duplicou nos últimos anos: passou de uma média de duas mortes por semana para quatro.

Só em 2017, morreram por todo o mundo pelo menos 185 ambientalistas e defensores das suas terras: 56 deles no Brasil e 47 nas Filipinas. Entre 2014 e 2017, a maior parte das mortes relacionadas com o sector agrícola foi registada no Brasil e nas Filipinas; o Brasil foi também o país com mais mortes ligadas à indústria madeireira.

Já no sector mineiro, a maioria das mortes foi registada nas Filipinas, na Colômbia e na Índia. Quanto à água e às barragens, a maior parte das mortes ocorreu na Guatemala e nas Honduras. As mortes associadas à caça furtiva foram mais registadas no Vietname e na República Democrática do Congo.

Os investigadores pedem cautela porque estas mortes por questões ambientais são “a ponta do icebergue” e explicam que há muito mais violência além das mortes. “Por cada defensor do ambiente morto, outros milhares enfrentam violência directa, ameaças e intimidação psicológica”, refere o estudo. Podem ainda ser alvo de repressão ou de discriminação religiosa ou devido à sua etnia.

Para efeitos de comparação, os investigadores explicam que as 1558 mortes de defensores do ambiente são não só mais do que as mortes dos militares do Reino Unido e da Austrália em zonas de guerra activa no mesmo período de tempo (697 militares), como corresponde também a quase metade do número de militares norte-americanos que morreram, desde 2001, no Iraque e no Afeganistão (4044 militares).

O Brasil tem sido “consistentemente o país com o maior número de mortes de defensores ambientais, sobretudo de populações indígenas” e a eleição do Presidente brasileiro Jair Bolsonaro “traz novas preocupações”. A intenção de flexibilizar a compra de armas e as leis ambientais, assim como o seu desinteresse assumido em proteger a floresta da Amazónia, acusando os ambientalistas de serem “terroristas”, têm sido dos principais motivos de preocupação.

“Acreditamos que os ataques em comunidades indígenas têm mais tendência para crescer, sobretudo no Brasil, onde Jair Bolsonaro tomou posse com a promessa de que os indígenas têm de se adaptar à maioria para não desaparecerem”, conta a investigadora Nathalie Butt ao PÚBLICO, por email. “Ele está a pôr a exploração do ambiente em primeiro lugar.” 

No final de Julho deste ano, o líder indígena Emyra Wajãpi (de 68 anos) foi morto no estado brasileiro do Amapá enquanto voltava para a sua aldeia depois de visitar a filha numa povoação vizinha. A comunidade local diz que o corpo foi encontrado no rio e que a sua morte resultou do ataque de um grupo de garimpeiros, que o esfaqueou.

Em resposta, Jair Bolsonaro, conhecido por contar com o apoio do sector rural brasileiro e por comparar os indígenas a “animais de jardim zoológico”, continuou a afirmar que pretende “legalizar o garimpo” em reservas indígenas da Amazónia. “Isto cria uma legitimidade para que os garimpeiros invadam, matem e façam aquilo que acharem por bem”, disse na semana passada a antropóloga Susana de Matos Viegas, em entrevista ao PÚBLICO.

Susana de Matos Viegas alertava que a política de Bolsonaro pode levar ao extermínio dos povos indígenas no Brasil e afirmou que a morte daquele líder indígena “é um sinal de que se está a concretizar o pior que podia acontecer, e é apenas o início”.

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