“Em 2017 foi presa por homicídio. Um erro levou-a de volta à escola”, publicado em 28 de Julho de 2019
O “PÚBLICO” inseriu um artigo sobre uma professora, que é atualmente minha cliente.
Ela encontra-se em liberdade, acusada de homicídio qualificado e de incêndio.
Segundo o jornal, o pecadilho judiciário que permitiu que a arguida saísse da prisão de Tires foi cometido por três juízes do Tribunal da Relação de Lisboa que analisaram o seu recurso da sentença de primeira instância. Numa tentativa de aprimorar o trabalho dos colegas que o antecederam, os magistrados mantiveram a mesma pena de cadeia mas modificaram ligeiramente a redação dos factos provados.
Tal é inexato.
Eu sou apresentado como Advogado da docente, quando não tive nenhuma intervenção no julgamento. Só conheci a arguida e o processo após ser proferida a sentença condenatória e ela decidiu mudar de defensor.
No artigo, conta-se que a arguida disse: “Matei a pessoa de quem mais gostava”. Tal não foi dito.
Também se afirma que a professora “voltou em junho passado a dar aulas”, quando isso ocorreu em maio. Vejamos o que realmente aconteceu.
Em março de 2018, a professora encontrava-se presa na cadeia de Tires e tinha sido condenada a 17 anos de prisão, por homicídio e incêndio. Eu não a conhecia. Porém, ela tomou a iniciativa de me ligar da cabine telefónica. Muito chorosa, comunicou-me que pretendia mudar de Advogado e gostaria que eu a defendesse.
Visitei-a, li a sentença e ouvi a gravação do julgamento. Logo, retirei duas conclusões:
1ª A arguida não tinha exercido todos os direitos de defesa que a lei colocava ao seu dispor.
2ª O julgamento fora extremamente rápido, resumindo-se a menos de vinte horas no total.
Eu inclinava-me para não aceitar defendê-la. O prazo para interpor recurso já se tinha iniciado e terminaria menos de um mês a contar dali. Eu iria partir para a Rússia três dias depois.
O desespero e a insistência da professora fizeram com que eu concordasse em representá-la. Efetuei boa parte do meu estudo e trabalho enquanto me encontrava em Moscovo.
Estabeleci dois objetivos:
a) A libertação da arguida;
b) Um processo justo e equitativo, como deve sempre acontecer, por força dos deveres que o Estado português assumiu a partir de 1978, ao aderir à convenção europeia dos direitos humanos.
Após o meu recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a condenação proferida em primeira instância.
Quando consultei o respetivo acórdão, imediatamente verifiquei que este era nulo, ou seja, não produziria efeitos.
Como não podia deixar de ser, o Supremo Tribunal de Justiça deu-me razão e declarou a invalidade daquela decisão.
Consequentemente, a minha cliente foi libertada e retomou a sua vida normal, como professora.
A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa é nula. Trata-se de um acórdão votado por dois juízes. A desembargadora presidente da secção subscreve-o, mas não tem direito a voto, nos termos da lei. A resolução foi tomada apenas pelo relator e pelo adjunto. E, sobretudo, trata-se de um ato inválido.
Parafraseando Ilustre Conselheiro, os desembargadores serão colegas dos juízes de primeira instância. Agora se estes são colegas dos juízes da Relação, já é controverso.
O fundamental é o seguinte.
A sentença condenatória não se acha validamente confirmada por tribunal superior. O Tribunal da Relação não proferiu decisão válida sobre o recurso interposto da sentença.
A deliberação inicial foi impugnada e a decisão tomada na sequência do recurso é nula. A nulidade não surgiu da mera omissão de uma formalidade. Verifica-se porque tem de haver respeito pelos direitos humanos e pela necessidade de existir um processo justo e equitativo.
O que os leitores do “PÚBLICO” têm o direito de saber é que três juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça decidiram que os direitos humanos devem ser respeitados e que a professora goza de faculdades processuais que lhe são asseguradas pelas garantias de defesa.
Nomeadamente, à arguida assiste a possibilidade de manifestar a sua posição perante a factualidade que se pretende demonstrar.
Por outro lado, ela pode apresentar provas que sustentem a sua versão.
A minha constituinte merece estar em liberdade e tem todo o direito a exercer a sua atividade profissional.
Goza da faculdade de ser alvo de um processo justo. É fundamental que o mesmo seja equitativo.
Há 41 anos, Portugal obrigou-se a observar grande parte das regras estabelecidas na convenção europeia dos direitos humanos.
O nosso país estabeleceu algumas reservas, por forma a eximir-se ao seu cumprimento em determinadas situações. Mas, de um modo geral, assumiu o compromisso de respeitar os direitos humanos.
E é precisamente isso que foi reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, a catedral do sistema judicial. A minha cliente goza do direito de se pronunciar e apresentar provas relativas aos factos que lhe são imputados, não se encontrando assegurada essa prerrogativa até ao presente momento.
Fez-se justiça. Respeitaram-se os direitos humanos.
Não há espaço para contestar a sua vida em liberdade. Não existe motivo para estranhar que ela exerça a sua profissão.
Helder Fráguas, Advogado, atual defensor da arguida no processo n° 1711/16.4S6LSB