Ricardo Henriques: mouro, rei e, nas horas vagas, dentista

Ele é uma das figuras centrais da Viagem Medieval em Santa Maria da Feira. Figurante, actor, modelo fotográfico ou encenador, Ricardo vive a Viagem com paixão.

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Nelson Garrido

Tivessem sido melhores os professores de História da Escola Secundária de Santa Maria da Feira e Ricardo Henriques não teria descoberto tão tarde a sua paixão pela Idade Média. Hoje tem 48 anos e lamenta que só há 15 se tenha verdadeiramente apercebido do potencial romanesco dos enredos da época, de tanto que eles foram ofuscados nas aulas do liceu pelo tom monocórdico e aborrecido de docentes que se limitavam a debitar informação sem lhe explorarem o potencial cénico e dramático.

Quem o salvou da tormenta desse desconhecimento foi a Viagem Medieval em Terra de Santa Maria: a recriação que até 11 de Agosto deverá levar 700.000 visitantes ao centro da Feira foi impulsionada com a ajuda do seu pai, Alfredo Henriques, que durante vários mandatos assumiu a presidência da autarquia local, e foram os primeiros percursos em família pelos cenários do evento que despertaram Ricardo para o wow effect da História Portuguesa.

Quando o pai saiu da cena política, entrou então Ricardo nos palcos da Viagem. A primeira experiência enquanto figurante foi a título de prémio pela vitória num torneio e depois seguiram-se vários papéis de soldado mouro ao longo dos anos, sempre em regime de voluntariado. Os encenadores profissionais reconheceram-lhe, no entanto, o talento e em 2017 o dentista formado pela Universidade do Porto foi seleccionado no casting da organização para interpretar D. Afonso IV.

Arco: “Este arco foi feito especificamente para mim pelo grande artesão que é o [Francisco] Esteves”, conta Ricardo, que gosta particularmente de o usar nos espectáculos da noite, quando as flechas são lançadas com fogo nas pontas e traçam no ar um meio círculo de luz. Às vezes acontece que o arqueiro ateia fogo às suas próprias vestes, recorda ele com humor, mas “aparece sempre alguém para ajudar a apagar as chamas”. Nelson Garrido
Livro: este livro de Bernardo Vasconcelos e Sousa despertou em Ricardo um especial fascínio pelo rei D. Afonso IV. Dele retirou ensinamentos com que se destacou no casting para escolha do actor que daria vida ao monarca nos cartazes e encenações da Viagem de 2017. “Adorei o livro, levei-o comigo para muitos sítios e fez-me admirar muito este rei“, revela. Nelson Garrido
A espada: desde que Ricardo trocou as armas do guarda-roupa da Viagem Medieval por adereços próprios, é a esta espada que se mantém fiel. Começou a usá-la quando ainda interpretava o papel de mouro e, no percurso por diferentes papéis ao longo de várias edições dessa recriação histórica, gosta mais dela a cada amolgadela que sofre. “Amparou a pancada toda que levei”, diz, com orgulho. Nelson Garrido
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Arco: “Este arco foi feito especificamente para mim pelo grande artesão que é o [Francisco] Esteves”, conta Ricardo, que gosta particularmente de o usar nos espectáculos da noite, quando as flechas são lançadas com fogo nas pontas e traçam no ar um meio círculo de luz. Às vezes acontece que o arqueiro ateia fogo às suas próprias vestes, recorda ele com humor, mas “aparece sempre alguém para ajudar a apagar as chamas”. Nelson Garrido

Entre o público que não o conhecia, o perfil amargo que adoptou nos cartazes fazia lembrar a intensidade de Jeremy Irons; entre a audiência mais familiar, parentes e amigos próximos viram a mudança como uma etapa natural do seu processo de “medievalização”, enquanto outros nem se aperceberam que o homem nos cartazes da festa era o dentista com clínica em Argoncilhe.

De actor e modelo até ao papel de dramaturgo foi outro passo rápido. Ricardo Henriques começou a escrever as peças do Grupo de Expressão Dramática de Escapães, uma das instituições que assegura conteúdos teatrais para a Viagem, e agora é também encenador da rubrica Momentos da Vida d’El-Rei, que, sempre às 16h e em diferentes locais, abordará em cada dia da recriação um episódio distinto do reinado de D. Fernando, o monarca que inspira a edição de 2019.

Embora reduzindo a actividade no seu consultório durante Julho e Agosto, o que lhe causará um prejuízo que prefere não revelar, mas que fontes da organização da Viagem situam “nuns 5000 euros em cada edição do evento”, Ricardo continua a acelerar o ritmo neste período do ano para conjugar toda a vida artística com a profissional e não o faz pelas remunerações actuais – que ou cabem ao grupo dramático que representa ou, se auferidas a título próprio, também não ficam na sua posse e recebem melhor destino. “Isto é mesmo tudo por uma questão de gosto pessoal e pelo que a Viagem me dá a mim: as amizades que se criam cá dentro, o interesse renovado e motivante pela nossa História, e uma ligação mais forte ao Castelo da Feira e ao passado que ele representa”, explica.

Figurante, actor, modelo fotográfico ou encenador, em tudo Ricardo descobre uma graça própria, mas o que mais gozo lhe dá actualmente é escrever as peças de teatro que recriam o espírito da Idade Média. Anda sempre com livros de História atrás de si, sejam de carácter académico ou biografias ficcionadas, e admite que gostava de ter o seu nome na lombada de um deles. “Já faltou mais”, insinua. “Só tenho que arranjar maneira de esticar mais um bocadinho os meus dias.”

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