Os espasmos do corpo democrático brasileiro

A liberdade democrática caminha até à estaca que demarca o que é liberdade e o que é libertinagem ditatorial. O Brasil já passou, por vezes, da borda, e hoje, lamentavelmente, flirta com os limites.

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Reuters/ADRIANO MACHADO

Esta semana, na sequência de recorrentes arroubos verbais considerados graves por inúmeras autoridades brasileiras, Jair Messias Bolsonaro, actual Presidente da República e ex-capitão do Exército Brasileiro, afirmou que os arquivos oficiais da Comissão da Verdade (comissão que investiga crimes e ofensas aos direitos humanos oriundos do período ditatorial brasileiro) acerca dos mortos no regime de excepção (1964-1985) não passam de “balela”.

Que o mundo como um todo se encontra politicamente conturbado nestes decénios do século XXI, todos nós sabemos. Contudo, parece-me que as jovens democracias da América Latina assumem uma peculiaridade neste contexto, por continuarem a cortejar o seu passado mais obscuro.

Em rigor, não é estranho que a essência democrática faça surgir até mesmo o oposto, pois a sua verdadeira marca é a liberdade, com escanteios de legalidade. É-se livre nos marcos da lei. A liberdade democrática caminha até à estaca que demarca o que é liberdade e o que é libertinagem ditatorial. O Brasil já passou, por vezes, da borda, e hoje, lamentavelmente, flirta com os limites.

A democracia brasileira que, em 2018, comemorou 30 anos de ressurreição dolorosa (a Constituição de 1988 completou 30 anos a 5 de Outubro de 2018), parece ainda ter de gritar todos os dias “Não!” à coroa de espinhos que lhe tentam fazer descer pela cabeça e ao pau de arara ao qual a tentam amarrar. Ditaduras tendem ao infinito pela força. Democracias só tendem à continuidade pela liberdade. A mais perfeita das ditaduras não se compara, nem de longe, à mais imperfeita das democracias.

A agonia do corpo democrático brasileiro é constante. Afinal foi há pouco, há bem pouco tempo, que o seu espírito parecia renascer qual fénix no horizonte do Cruzeiro do Sul para tentar, uma vez mais, entrar pelas veias abertas do coração da América Latina.

É preciso estar vigilante. O modelo democrático dá sinais de esgarçamento pelo globo. A princípio, os sinais clínicos aparecem subtis e pontuais nos órgãos, mas depois a hemorragia alastra-se até ao ponto de atingir o corpo institucional como um todo. A autólise (morte celular) ocorre justamente quando já não há mais caminho para a totalidade orgânica e, assim como o corpo humano, o democrático também dá seus sinais. Infelizmente, a falência múltipla dos órgãos democráticos acontece por um quê de imperícia política, isto é, por se crerem irrelevantes os sintomas locais incipientes.

No Brasil, talvez por estarmos acostumados a encarar sangrentas rupturas como meras revoluções, acabamos crendo que tudo é, e sempre foi, democracia. Por estarmos habituados a olhar para trás e não vermos golpes, cremos que democracias são rompidas abruptamente por ditaduras, quando, na verdade, em solo brasileiro, das ditaduras é que se irrompeu a democracia. Por termos fé na ideia de que democracias acabam com golpes certeiros, desatentamos para o facto de que ela possa morrer aos poucos. O corpo democrático brasileiro tem espasmos constantes, não será dada a hora de o curar? É preciso estar atento, democracias exigem acompanhamento permanente dos, e entre, seus órgãos.

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