Do egoísmo à indiferença na Europa

Para que serve a Comissão Europeia é uma questão que paira na sombra, sem que ninguém se interesse por levantá-la, avaliá-la ou discuti-la.

Quando a União Europeia era ainda a CEE, com um reduzido número de membros, a Comissão Europeia era uma espécie de emanação dos Estados que a constituíam, com um mandato claro para avançar na construção de uma estrutura colectiva mais integrada, mais resiliente e mais competitiva. Havia que não dar espaço ao bloco soviético.

Hoje, porém, nenhum país se vê realmente representado na Comissão, uma constelação de 28 membros de 28 nacionalidades com competências e responsabilidades tão diversas quanto imbricadas, que não consegue sequer equacionar uma estratégia ganhadora para a UE no mundo. Mais, como as crises em que vivemos bem revelaram, a União apresenta-se cada vez mais fragmentada, polarizada e descapitalizada.

Os dois parágrafos precedentes constituem a introdução de um artigo do autor publicado no PÚBLICO de 5 de Julho de 2015 intitulado “O Fim da Comissão Europeia”. De facto, é claro hoje em dia que a responsabilidade dos Estados-membros da União reside exclusivamente nos respectivos governos nacionais. Com a queda do muro de Berlim e a implosão da União Soviética os americanos desinteressaram-se do papel geoestratégico de uma “fortaleza Europa”. Bastam-lhes para tal os seus súbditos das Ilhas Britânicas.

Para que serve a Comissão Europeia é pois uma questão que paira na sombra, sem que ninguém se interesse por levantá-la, avaliá-la ou discuti-la. O problema acentuou-se nos tempos da concepção da Estratégia de Lisboa, aprovada como apontando uma finalidade desejável e mobilizadora em direcção ao futuro.

É que a Estratégia constituiu-se como uma iniciativa do Conselho da União Europeia (os chefes de Estado e de governo dos seus membros) e não da Comissão Europeia, que assim se subalternizou politicamente. Passou então a estar encarregue apenas da gestão corrente dos assuntos europeus. Por este motivo, não assumiu a condução do processo que começou com a crise de 2007/2008, importada do outro lado do Atlântico e que degenerou na “crise das dívidas soberanas”. Foi-lhe cometido apenas um lugar na “troika”.

Desde então tem a Comissão mostrado igualmente não ser a entidade decisora nem decisiva em nenhum dos grandes desafios que a União e os seus membros têm enfrentado. O impulso inicial de unidade europeia desvaneceu-se. Como mecanismo de redistribuição e coesão multi-Estados, o bolo comunitário nunca ultrapassou um décimo do que seria um putativo orçamento “federal”.

E o que dizer das recentes dores de cabeça que afligem a União, abalando as suas entranhas até às fundações? Quem, que entidade, que Estado-membro tem legitimidade para assumir e responder de modo cabal em seu nome? Diz o filósofo Dominique Lecourt no seu recente livro L’Égoïsme que encontramos sempre o individualismo moderno como retaguarda de todas as vitórias do egoísmo.

O egoísmo da competição suscita rivalidades, invejas e baixezas que envenenam o nosso quotidiano, do medo ao terror, da corrupção à violência, da propaganda à manipulação, do desprezo à indiferença. Vemo-nos cercados por migrantes, submersos pela comunicação desenfreada, impotentes quanto à aproximação da pobreza, descartáveis no turbilhão das alterações climáticas.

Não admira que o comportamento dos eleitorados europeus se tenha tornado caótico. E que nos vamos tornando insensíveis quer à desgraça, quer à felicidade dos outros. Este egoísmo da indiferença vai roendo silenciosamente as ligações que nos unem. E acabamos por abdicar perante o sistema. Ou, por vezes, por nos revoltar! A revolta começa por um grito de indignação e de recusa. E da desobediência à insurreição vai um passo. “O inaceitável é inaceitável.”

Compreendê-lo é um acto de cultura. Que cada um de nós, na Europa e no mundo, se examine, a si próprio, à sociedade que o rodeia, ao lugar que ocupamos no universo. Que reflicta sobre a contingência mas também sobre a beleza da vida. Que reconheça o enorme esforço que foi propor e assegurar uma ordem para as coisas naturais de modo a que sobrevivêssemos. E que, depois, aja!

É essencial que os mais jovens descubram estas sementes de lucidez para que se não conformem. Demora o seu tempo, mas acaba por acontecer. Como com a torrente de liberdade e de igualdade que se seguiu à instauração da democracia. Não foi certamente a última vez que por cá sopraram tais ventos...

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