Perfeitas obras imperfeitas

A obra é agora ruína, libertada da sua condição funcional e servente, livre para simplesmente existir no mundo, num progressivo retorno à natureza, voltando a serem novamente um só. Será um edifício uma metáfora da condição humana?

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Não raras vezes, os edifícios são bem mais interessantes e intensos durante a sua fase de construção, quando temos a estrutura em bruto, com a crueza e honestidade dos materiais no seu estado mais natural, sem maquilhagens. Pilares e vigas de betão toscas com as marcas das cofragens sem regra aparente, os vários escorridos e uma variedade imensa de texturas: umas mais lisas e claras, outras mais escuras dos nós da madeira que lhes serviu de molde. Blocos de betão e tijolos com as suas faces rugosas e juntas de assentamento visíveis. Complexas treliças metálicas em aço.

Francas aberturas para o exterior sem elementos de distracção como aros de alumínio, vidros esverdeados ou reflexos. O traçado nos vários planos verticais denunciando a gravidade por onde as águas da chuva encontram o seu caminho. A luz mais dramática, pura, sem ser abrandada por vidros performantes de controlo solar. Som mais épico com algum eco favorecido pelo estado das superfícies ainda duras. Estruturas de inúmeros prumos de madeira ou perfis metálicos que ainda não foram revestidos com placas lisas. Espaços que dão para outros espaços, sem portas nem separações, numa convidativa fluidez espacial.

Nesta fase, os normais defeitos de construção não são um problema porque a obra está numa inocente fase de generosidade que tudo abraça. Tijolos ligeiramente desalinhados com marcas dos fornos que os cozeram. Betão com cantos e arestas desagregadas já a deixar ver as britas que o compõe. Rebocos de cimento com as impressões das talochas que ainda não foram alisadas, ou paredes já estanhadas com suaves superfícies de estuque com suas matizes heterogéneas creme-branco que ainda não foram pintadas com tintas plásticas homogéneas.

Estes proto-edifícios são perfeitas obras imperfeitas, inacabadas, despidas de tudo o que é mais frágil e supérfluo, numa poética harmonia entre matéria, luz e espaço.

Quando a obra avança para os acabamentos, quando começam a entrar as janelas e as portas, quando os centímetros começam a dar lugar aos milímetros e aos mícrones, quando se começa a esconder toda a rude estrutura e os planos interiores se tornam lisos, brancos e imaculados, algo se começa a perder. As poucas superfícies ainda cruas de betão, madeira ou pedra são polidas e envernizadas, ganhando uma nova face reflectora.

Tipicamente, os inevitáveis defeitos de construção começam a ganhar demasiado protagonismo, tais como os pequenos apliques, tampas, tomadas e detectores que agora parecem omnipresentes. Surge todo o tipo de sinalética, até para nos ensinar que não se deve usar elevadores em caso de incêndio. Conquista-se o desejado conforto térmico e acústico. Mas tudo isto acontece ao mesmo tempo que também se perde a natureza crua e selvagem da obra. Invariavelmente, o edifício amansa.

Estas qualidades encontradas numa obra em construção voltarão a ser reencontradas mais tarde, no oposto da sua linha temporal de existência, já durante o seu estado de ruína. Todos os edifícios acabam por atingir esta beleza crua intrínseca. Sejam os restos de espessas paredes de alvenaria de pedra a repousarem num prado, as ruínas de uma antiga unidade fabril com os seus tijolos e máquinas enferrujadas, sejam inteiros aglomerados antigos engolidos pela vegetação a reconquistar o seu espaço.

Já não estamos no tempo inicial de construção mas em período de desconstrução, de decadência, algures entre o fim de vida útil e o seu colapso final. A obra é agora ruína, libertada da sua condição funcional e servente, livre para simplesmente existir no mundo, num progressivo retorno à natureza, voltando a serem novamente um só. Será um edifício uma metáfora da condição humana?

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