Carta ao tipo que bebeu o café e se foi embora

A Vanessa resolveu escrever ao Artur, um tipo que tinha convidado para beber café e que, mal ela pousou o café na mesa, levantou-se e bazou dali

Foto
Reserve as quintas-feiras para ler a newsletter de Ana Sá Lopes em que a política vai a despacho.

A Vanessa hesita em enviar ou não enviar as cartas que, influenciada por Moses Herzog, está a escrever a algumas personagens obscuras da sua vida. O professor pifado não as enviou. A Vanessa, razoavelmente pifada mas dentro do espectro do pifado-funcional – que inclui todas as pessoas que, ainda que num estado de pifanço, levantam-se todos os dias para ir trabalhar e simulam alguma conformidade com as convenções e os padrões habituais – acha que eventualmente as devia pôr no correio.

Eu não tenho opinião sobre o assunto. Os nossos amigos ficam devastados quando nos perguntam o que devem fazer numa determinada situação e respondemos “não sei” – também já me aconteceu mas as coisas são como são.

— Escrevi àquele gajo a quem convidei para beber um café. Lembras-te de te contar que depois de beber levantou-se e saiu?

Por acaso lembro. Ganda maluco.

— Acho que também lhe devia escrever uma carta. Apesar de tudo, achei-lhe graça. Antes do café, óbvio.

“Olá, Artur. Não sei se ainda te lembras de mim. Conhecemo-nos há uns tempos, na casa dos Fonsecas, aquele casal chato que costumava fazer uns jantares. Fui lá parar porque era amiga da Magda, lembras-te da Magda? Ela era amiga deles. Agora – e deve ser da idade – só vou jantar a casa de amigos. Eliminei a cena dos amigos de amigos, se calhar até porque esse jantar foi uma enorme seca e depois porque te conheci. Bem, no princípio conhecer-te até foi giro. Lembro-me que tinhas uns incríveis olhos azuis e, enfim, eu tenho uma palermice com olhos azuis. É só porque quase não há e vai-se a ver tudo se resume à hipervalorização de raridades, uma paranóia como a que têm os coleccionadores. Mas, pronto, à conta disso convidei-te para tomar um café uns dias depois. Encontrámo-nos na padaria portuguesa da Avenida da Igreja. Eu fui a primeira a chegar, tu apareceste logo depois. Eu já estava na bicha com o talãozinho e disseste-me que querias um café. Eu disse ok, que te fosses sentar lá fora. Estava uma tarde fixe, solinho, a rua tranquila. Eu cheguei com os cafés e um bolo para mim. Entreguei-te o teu, e fui bastante simpática. Eu até estava gira, lembro-me de ter levado o meu vestido amarelo. Mal eu pousei o teu café na mesa, bebeste-o como se fosse um shot, levantaste-te e bazaste dali. Ainda hoje estou para perceber o que aconteceu. Na altura pensei “o gajo é doido” e não liguei mais. Mas a coisa persegue-me. O que se passou? Tiveste um ataque de pânico? Ou foi aquela coisa que é o oposto do amor à primeira vista, a aversão à primeira vista? Foi isso, aversão à primeira vista? Importavas-te de explicar melhor? É uma curiosidade mórbida, eu sei. Mas acho que prefiro saber”.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários