Militâncias e Justiça

É lícito que o juiz se envolva activamente e se assuma como militante de causas sociais, políticas, ideológicas ou religiosas, quaisquer que elas sejam?

A renúncia da juíza do Tribunal Constitucional (TC) Clara Sottomayor suscita perplexidades que merecem reflexão. Segundo veio a público, ter-se-á recusado a retirar do projecto de acórdão sobre a constitucionalidade da lei dos metadados uma consideração lateral, com que os outros juízes não concordavam, que equiparava a violência doméstica ao terrorismo. Não é fácil ver a relação entre o acesso dos serviços de informações aos dados das comunicações privadas e a violência doméstica, ao ponto de se perceber a necessidade de incluir na decisão aquela discutível equiparação conceptual. O facto é que, horas depois da renúncia, a propósito de um artigo da organização Feminist Current, a mesma juíza proclamou no Facebook aquilo que tinha tentado pôr no acórdão: “A violência contra mulheres e meninas deve ser considerada uma forma de terrorismo. Talvez então os Estados actuem.”

Chegamos assim à primeira perplexidade: é lícito que o juiz expresse na decisão judicial convicções pessoais laterais à fundamentação? No plano da auto-regulação ética, a resposta é clara e está dada há muito tempo no documento Compromisso Ético dos Juízes Portugueses: “a correcta interpretação do princípio da reserva impede que o juiz utilize a decisão judicial ou a audiência pública para exprimir opiniões ou considerações pessoais de natureza política, ideológica ou religiosa, que não sejam estritamente necessárias para a respectiva fundamentação e se afastem manifestamente do objecto do caso.” Portanto, sem dúvida, uma “decisão-comício”, em que o juiz usa o poder de que está investido para forçar a imposição das suas convicções pessoais sobre matérias alheias ao processo, é eticamente ilegítima.

Questão diferente é saber se essa falha ética deve ter relevância disciplinar. A resposta não é fácil. Depende das variáveis concretas do caso. Mas, em regra, o controlo administrativo-disciplinar do mérito da fundamentação da decisão judicial implicará violação flagrante do princípio da independência. De todo o modo, não quero avançar mais nesta matéria enquanto estiver pendente nos tribunais a apreciação do caso de outro juiz que foi punido pelas expressões que escreveu num acórdão.

De acordo com os jornais, a juíza que renunciou ao TC assume-se como activista de causas feministas. Chegou a declarar que “infelizmente, em Portugal, não existe uma teoria feminista do direito” (Capazes, entrevista de 26/11/2015). Esta é a segunda perplexidade. É lícito que o juiz se envolva activamente e se assuma como militante de causas sociais, políticas, ideológicas ou religiosas, quaisquer que elas sejam? O Compromisso Ético dos Juízes Portugueses dá outra vez uma resposta muito clara: “O juiz é livre de participar em qualquer actividade cívica, desde que a mesma não seja susceptível de comprometer a sua imparcialidade ou de prejudicar o exercício da actividade jurisdicional. Em especial, o juiz abstém-se de aderir a organizações colectivas e de participar em debates públicos, sempre que, segundo a apreciação de uma pessoa razoável, bem informada, objectiva e de boa-fé, isso possa perturbar a imagem de imparcialidade ou independência relativamente a questões susceptíveis de virem a ser submetidas aos tribunais.” Portanto, no plano da ética, militâncias e Justiça não casam.

É evidente que nenhum juiz é ideologicamente neutro e que todas as decisões têm efeitos sociais. Aplicar a lei aos casos da vida não é um acto asséptico. Simplesmente, o problema não é esse. O juiz militante com fidelidade psicológica a causas sociais – sejam elas quais forem – tende a distorcer o sentido da lei para a acomodar às suas próprias convicções. E isso é a negação da Justiça, que tem de ser imparcial, objectiva e o mais distanciada possível da personalidade do juiz.

Se quisermos ver isso com toda a nitidez, fora deste caso da juíza do TC, podemos pensar no que aconteceu em 2001, quando o Tribunal de Moura foi chamado a decidir sobre os touros de morte em Barrancos. Se a juíza que julgou o caso fosse uma conhecida aficionada defensora das touradas de morte, ou, ao contrário, uma activista proibicionista anti-touradas, alguém acreditaria na imparcialidade da sua decisão? A resposta é tão óbvia que dispensa mais justificação. Fazer justiça não é fazer engenharia social instrumentalizando as decisões a causas que não sejam as do Direito. Isso é outra coisa.

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