Precariedade: “Só conheço um arquitecto com contrato. São casos excepcionais”

Portugal é o segundo país europeu com mais arquitectos e é também onde os profissionais deste sector ganham menos. Diogo Veloso, de 29 anos, ainda não fez o estágio de acesso à Ordem — todas as propostas eram não remuneradas. Equaciona emigrar, ainda assim assume-se como um “privilegiado”. Um testemunho na primeira pessoa, construído a partir de entrevista.

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Diogo Veloso tem 29 anos Nelson Garrido

“Comecei a estudar arquitectura na Covilhã e estive lá até aos 20 anos, altura em que deixei o curso. Fui trabalhar: trabalhei dentro e fora da área, como desenhador ou num hotel canino, mas nunca me separei por completo da arquitectura. Com 22 anos, decidi que queria voltar a estudar e ingressei na Universidade Lusíada do Porto. Comecei a abrir horizontes, participei num voluntariado organizado pela Casa da Arquitectura e quando voltei a Viana do Castelo, no final do curso, fui chamado para trabalhar na Casa da Arquitectura, em Matosinhos, como assistente em tempo parcial, onde ainda estou.

Fui simultaneamente procurando estágio de acesso à Ordem dos Arquitectos. Mas ainda não o fiz porque todas as propostas que tive eram não remuneradas. Acredito que este não seja um problema inerente à arquitectura, mas sim um problema cultural, porque em todas as áreas o estágio de acesso à Ordem não é remunerado, excepto no internato de Medicina.

Cheguei a ter propostas, nomeadamente em Lisboa, de 200 ou 300 euros por mês. Em Lisboa. Eles justificavam que eram ajudas de custo, que não era propriamente um salário. Mas sempre tive muita dificuldade em dialogar nessas condições. A minha proposta era sempre associar o estágio de acesso à Ordem ao estágio do IEFP. Mas sempre que eu falava no estágio do IEFP, os ateliers fugiam. Nos estágios para a Ordem há essa tendência de ficarmos ali um ano a fazer trabalho gratuito e isso faz-me um bocado de confusão, principalmente agora que tenho outras coisas em mãos.

Entretanto surgiu-me uma oportunidade: comecei a trabalhar com um empreiteiro durante a semana e mantive o trabalho na Casa da Arquitectura ao fim-de-semana. A remuneração é muito acima do habitual. É a recibos verdes, de qualquer das formas, porque ainda estou no terceiro mês experimental. Mas o meu patrão, o Sr. António, paga-me bastante bem para o que é a média, os tais 1000 euros [brutos] de que o estudo da Ordem fala. Ele paga-me mais do que isso por 35 horas semanais, das quais eu acabo por não despender totalmente.

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"Ir lá para fora é uma opção", diz Diogo Veloso Nelson Garrido

Eu fui um privilegiado. Quando fui chamado para este trabalho aconteceu-me o contrário do habitual: o meu patrão perguntou-me quanto é que eu achava que merecia e ofereceu-me mais. A minha experiência até agora sempre foi o contrário. Já tive uma entrevista para um estágio onde me ofereciam dois euros à hora em regime de exclusividade. E onde me disseram que ‘o que não falta são arquitectos’

A perspectiva mínima para este trabalho que estou a fazer agora era de três meses, mas dado o interesse mútuo em investir neste projecto o Sr. António pretende ter-me lá de forma mais permanente. Para já não sinto necessidade de ir para a Ordem porque não preciso de assinatura para o trabalho que estou a fazer, que é como desenhador. Mas também não é do interesse dele ter-me a longo prazo sem poder assinar projectos. Então fez-me uma sugestão: ele conhece alguns escritórios que não se importam de me acolher no atelier deles. Ele continua-me a pagar à parte e assim faço o estágio à medida que vou trabalhando no projecto deste empreendimento. É assim uma situação sui generis, não é um processo de todo habitual. Isto tudo é estratagema para tentar fugir à precariedade.

Muitos dos meus colegas da Casa da Arquitectura, para fugir a tudo isto, enveredaram por outros caminhos. Tenho uma colega que está a tirar Museologia e Património, outra que estagiou durante nove meses e agora está a fazer curadoria em Belas Artes. Tenho outro amigo que também se formou pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa e agora está a tirar Economia na Lusíada. Vamos conseguindo fazer estas estratégias paralelas. Mas de certa forma estamos todos a fugir da arquitectura.

Alguns dos meus colegas da universidade enveredaram pelo caminho normal. Uns estão a recibos verdes enquanto não começam o estágio, outros estão a fazer o estágio de forma não remunerada ou muito pouco remunerada e outros estão a concluir o estágio e à procura de outros gabinetes para trabalhar. Porque muitas vezes acontece isso: faz-se o estágio à Ordem e no fim o gabinete não está interessado ou não tem espaço para ter lá a pessoa. 

Conheço uma pessoa que está contratada. São casos excepcionais e mesmo quando têm um contrato de um ou dois anos tentam investir de forma paralela na sua empresa ou no seu escritório. Porque mesmo tendo contrato, não são os contratos como antigamente, que são sem termo. Falamos sempre de contratos de curta duração, de um ano ou dois anos. Que nos dá alguma flexibilidade para o futuro, se quisermos emigrar ou assim, mas não nos dá estabilidade para comprar uma casa, por exemplo. 

Ir lá para fora é uma opção para mim. Porque 1000 euros brutos, a média em Portugal, são cerca de 750 líquidos. Pondo as coisas nestes termos é muito complicado, principalmente para quem ingressa por uma universidade privada, em que metade iria para propinas. Portanto, só para compensar o investimento... demora algum tempo. Quanto mais comprar carro, comprar casa...

E quando começamos a ver Áustria, Holanda e percebemos quanto é que recebe um arquitecto lá ficamos com outra perspectiva. Talvez fosse para a Holanda, por uma questão cultural. Lá a profissão de arquitecto é valorizada de forma diferente. E não sei se isso se é por causa da demasiada oferta que nós temos, ou da pouca procura, mas a nossa profissão acaba por se tornar demasiado medíocre. Aqui acho muito difícil deixar de precisar de ter alguma coisa que subsidie a arquitectura.

Neste momento, em Portugal, estamos a fazer arquitectura do pladur, do gesso cartonado, de fábrica. Os gabinetes estão a despachar os projectos e é por isso que a mão-de-obra é tão barata. Os projectos também não podem sair bons: os clientes pagam pouco, os honorários são muito reduzidos, os ateliers depois também têm de pagar pouco aos colaboradores e os colaboradores têm de fazer os projectos com mais rapidez e com menos qualidade. A partir do momento em que há horas extraordinárias não remuneradas, as pessoas ficam no escritório das 9h à meia-noite muito dentro de um espírito ditatorial… Se nós estamos cansados, a própria arquitectura vai ser frágil. 

Ainda assim, trabalhar fora da arquitectura não me passa pela cabeça. Comecei a perceber que a arquitectura é completamente multidisciplinar e posso actuar em várias frentes. Neste momento eu estou na Casa da Arquitectura, que é uma veia mais cultural, expositiva, curatorial; tenho o projecto da revista Dédalo, onde há a vertente mais jornalística, e agora tenho este trabalho de construção de projecto. Ou seja, há pelo menos estas três frentes que se ramificam em muitas outras. E acho que isto é o bonito da arquitectura e foi por isso que eu investi tanto nela. Também ambiciono fazer investigação. Vou concorrer, talvez depois do estágio, a bolsas de doutoramento, para continuar o estudo que fiz na minha dissertação sobre um tipo de casas rurais do Porto. E acho que a arquitectura tem este espaço de manobra para conseguir fazer o que me interessa.”

Artigo corrigido às 12h43. Não existe exame de acesso à Ordem dos Arquitectos, como estava escrito, por lapso, na entrada.

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