Em defesa da democracia

Istambul, Moscovo, Hong Kong, o que liga movimentos tão díspares? A defesa da democracia.

O 25 de Abril, em Portugal, marcou o início da terceira vaga da democratização. Durante três décadas, a democracia triunfou. Estendeu-se a todo o globo e tornou-se o único regime aceite como legítimo. Durante a década seguinte, estagnou. E agora está em retrocesso global. O processo vinha de trás, mas o “Brexit”, a eleição de Trump e a ascensão dos populismos na Europa fizeram soar as campainhas no Ocidente. A afirmação internacional da China de Xi, os golpes de força da Rússia de Putin e os sucessos de Erdogan na Turquia, Duterte nas Filipinas ou Bolsonaro no Brasil conferiram ao processo uma dimensão global. 

À terceira vaga de democratização está a suceder uma terceira vaga de autocratização. Para uns, a razão é de natureza interna: são os autocratas, travestidos de democratas, que chegam ao poder por via eleitoral e alteram, pelo caminho, as regras da democracia. Começam por controlar os media, depois atacam a independência do poder judicial, limitam as liberdades cívicas, restringem a sociedade civil e acabam a manipular as eleições livres e justas. Para outros, há também razões de natureza externa: é que a instauração de regimes autocráticos no plano interno não vai sem consequências no plano internacional, sobretudo quando se trata de grandes potências.

A emergência da China como potência global alternativa à hegemonia americana, por um lado, e as sucessivas violações do direito internacional e agressões militares da Rússia, por outro, são disso o exemplo mais acabado. No caso de Putin, o objectivo é mesmo declarado: atacar o liberalismo, minar a democracia e alterar a ordem internacional liberal. E o pior é que tudo isso é feito com a cumplicidade de Trump. Não porque o realismo político ou interesse nacional americano o obriguem, mas antes pela proximidade ideológica e a afinidade pessoal que o liga aos autocratas.

Mas seja quais forem as razões, uma coisa é certa: a liberdade e a democracia estão sob assalto e globalmente em retrocesso. Mais, se olharmos para esse retrocesso, uma coisa parece evidente: a queda das democracias já não é o que era. Dantes, caíam de um só golpe, súbita e estrondosamente, à força das armas. Era o tempo dos golpes de Estado. Hoje, caem lenta e silenciosamente. Na verdade, não caem, vão caindo. À medida que os incumbentes usam os mecanismos democráticos para subverter a própria democracia. Isto é, as democracias já não caem pelo método violento do derrube, mas sim pelo método incremental da erosão. Quer isto dizer que o destino inexorável é o da tirania? Não. E não só porque a história nos diz que um novo ciclo democrático se seguirá. Mas também porque nos regimes autocráticos contemporâneos são muitos os sinais da resistência democrática. Das instituições, das oposições políticas e, sobretudo, das sociedades civis.

Um primeiro sinal veio da Turquia. Nas eleições locais, a população de Istambul, a maior e mais cosmopolita cidade da Turquia, votou para presidente da câmara no candidato da oposição. Erdogan não gostou e, à boa maneira autocrática, anulou os resultados e convocou novas eleições. Há duas semanas, Istambul voltou às urnas e voltou a infligir uma derrota ao Presidente. Ainda mais estrondosa. Um segundo sinal chega da Rússia, onde se aproximam, também, eleições locais. Eleições livres e justas, sobretudo em Moscovo e São Petersburgo, seriam um teste à sua popularidade, risco que Putin não quer correr. Receia que se repitam os resultados turcos e apressou-se a impedir a oposição de concorrer às eleições, proibindo o registo de candidaturas independentes. Os protestos nas ruas de Moscovo não se fizeram esperar e a repressão foi tão violenta que se arrisca a transformar eleições locais num movimento político nacional. O terceiro sinal vem de Hong Kong e dos “dois milhões de jovens” que se manifestam contra o Governo. A causa próxima é a lei da extradição, mas a verdadeira razão é bem mais profunda. É o estatuto de autonomia que o território goza desde a transição da administração britânica para a China: um país, dois sistemas. O que está em causa desde a revolução dos guarda-chuvas, em 2014, é o medo de Hong Kong de perder a autonomia e, portanto, a democracia e a liberdade e o medo da China do contágio dos ideais democráticos.

O que têm em comum estes movimentos tão díspares? A defesa da democracia. Como Fukuyama se enganou, antes, ao anunciar o fim da história, também se enganam, hoje, os que anunciam o fim da democracia.

Nuno Severiano Teixeira interrompe a sua coluna em Agosto. O Mundo às Avessas regressa a este espaço em Setembro

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