As memórias de um povo entre A Lã e a Neve

Ferreira de Castro concebeu uma obra-prima que retrata a memória colectiva de um povo entre A Lã e a Neve.

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Ricardo Lopes

José Maria Ferreira de Castro, nascido em Oliveira de Azeméis, emigrou com 12 anos para o Brasil, onde publicou, em 1916, o seu primeiro romance, Criminoso por Ambição. Retornado a Portugal, publica diversos volumes até 1928, ano em que Emigrantes lhe valeu rasgados elogios da crítica nacional e internacional. Um êxito que seria suplantado em 1930 com A Selva. Foi colaborador em várias publicações nacionais, como O Século e O Diabo — que chegou a dirigir —, mas afastou-se do jornalismo em protesto contra a censura que se principiava a instalar no país.

Há um cunho singular nas obras de Ferreira de Castro. O seu poder de observação, retratando com exímia destreza o realismo social da sua época, aproxima-o do movimento neo-realista. Uma conotação que se estranha para logo se entranhar, envolvendo o leitor com a concepção um tanto naturalista dos personagens, os diálogos descomplicados e a descrição circunstanciadamente crua de cenários e eventos. Ferreira de Castro embala-nos profundamente com a sua habilidade de contar histórias, forçando o revisitar das nossas memórias na tentativa de experimentar as suas vivências.

Foi o que fez em A Lã e a Neve, romance originalmente publicado em 1947 e que nos transporta para os terrenos montanhosos da Serra da Estrela, apresentando-nos a vila de Manteigas e a cidade da Covilhã.

Se, numa primeira etapa, em Manteigas, introduz Horário — e a sua labuta de pastor — e Idalina, os simplórios protagonistas da narrativa, num segundo tempo, na Covilhã, compreendemos com aprofundado interesse a realidade social da época através dos relatos experimentados pelo casal na “Cidade Fábrica”, antiga “Manchester Portuguesa”, terra da lã e da neve.

Horácio e Idalina: uma história de amor para lá da montanha

Horácio regressa da vida militar com ideias renovadas. Quer adiar o casamento com a sua amada Idalina para juntar um pé de meia que lhes permita construir uma casa decente, como as que vira em Lisboa, diferente das habitadas pelos pobres de Manteigas, e que o autor descreve com frieza: “Os casas negrosas, velhentas, colavam-se umas às outras, com a parte inferior de granito escurecido pelo tempo e a parte cimeira com folhas de zinco enferrujadas (...). Este e aquele casebre exibiam apodrecidas varandas de madeira (...).” Ferreira de Castro escreve em termos comparativos: “A luz parecia desprender-se, como um véu, da imensurável cavidade, deixando ainda vermelhar a telha francesa das casas abastadas, enquanto os negros telhados dos pobres se somavam já à escuridão que avançava.”

E quanto às ruas? “(...) No Inverno, as enxurradas faziam correr todos os detritos, os detritos que, no Verão, secavam cheios de moscas, ao bom sol da serra (...)”

A princípio, Idalina não parece compreender os intentos do futuro esposo, mas, por amor, aquiesce. Para cumprir o sonho, Horácio planeia deixar a vida de pastor e trabalhar numa fábrica, e, após brilhante explanação do quotidiano pastoril, Ferreira de Castro transporta-nos para a cidade vizinha, a Covilhã, cuja pujança industrial no têxtil não encontrava termo de comparação.

Ali, com a ajuda de Manuel Peixoto, um pastor amigo, consegue colocação na fábrica de Azevedo de Sousa, e logo descobre que as diferenças sociais também se fazem notar. Ao longo da narrativa, entre travessias perigosas na serra, quase vencido pela neve e pelo nevoeiro, para visitar Idalina e os pais, em Manteigas, Horácio compreende que triunfar não será tão fácil quanto esperava.

Quando ascende à categoria de operário, o antigo pastor desposa – finalmente – Idalina, e arrenda uma casa mínima e envelhecida na cidade. Ali, principiam uma viagem a dois em busca da felicidade – e da tão desejada casinha.

A diferença entre classes, as greves e os livros proibidos

Ferreira de Castro expôs, sem subterfúgios, o dia-a-dia nas fábricas covilhanenses e a luta dos operários, que procuravam, na greve, melhores condições de trabalho, acabando aprisionados. Retratou impiedosamente uma diferença abissal entre classes. Procurou elucidar os desígnios da grande guerra que assolava o mundo, entre conversas de refeitório, e desenvolveu o pensamento crítico projectando a possibilidade de um futuro diferente. Para isso, concebeu Marreta, o velho operário que comunicava com esperantistas estrangeiros e guardava livros proibidos na sala onde reunia os colegas operários.

Por esta altura, o leitor pergunta-se: afinal, Horácio e Idalina cumpriram os seus desígnios? A resposta está na leitura atenta desta obra literária, que recupera as memórias de um povo entre A Lã e a Neve.

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